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terça-feira, 19 de junho de 2018

Quiximba - um testemunho


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Depois de um ano no relativo conforto de Santa Isabel, onde os riscos de guerra eram iminentes mas as acomodações e abastecimentos bastante seguros e confortáveis, no segundo ano de comissão fomos transferidos para o Zaire, com características geográficas e demográficas completamente diferentes. De comum, apenas a hostilidade mais ou menos disfarçada da população local, distribuída de forma diferente. No Uíge, pese embora a dispersão das populações provocada pela guerra, encontrávamos pequenos povoados dispersos, alguns sem qualquer presença militar ou autoridade civil visível, para além das autoridades tribais. No Zaire isso não acontecia, e os pouco povoados que vimos colavam-se a unidades militares estrategicamente distribuídas.
​Ambrizete parecia um paraíso, onde o refrigério do mar beijava uma larga e livre praia, tornando duro o virar de costas e rumar ao mato, mais do que uma centena de quilómetros inóspitos, apenas interrompidos por um "acidente" chamado Tomboco, onde se instalou a segunda companhia. Começava-se com alcatrão mas rapidamente ele cedia lugar à picada, valha a verdade que cuidadosamente mantida pela JAEA, e permitindo durante todo o ano o trânsito de todo o género de viaturas.
Quarenta quilómetros depois do Tomboco, no topo de uma colina, a estrada entalava-se entre um quartel e uma pista de aviação, e estávamos chegados a Quiximba.
A povoação seguia-se ao quartel, alongando-se pelos 600 metros da pista em descida suave, e um pouco mais longe, subindo a pequena encosta seguinte.
Havia uma simples lógica urbana na povoação: encostados ao quartel o posto do administrador local e a cantina do comerciante branco. Depois descendo a ligeira inclinação algumas filas de cubatas paralelas à estrada, voltando a subir ligeiramente na escosta seguinte cujo topo era ocupado por uma capela regularmente fechada.


Numa terra onde o único acontecimento digno de relevo era o milagre da sobrevivência diária, a nossa chegada alvoroçou tudo, e fomos surpreendidos por uma legião de mulheres à porta de armas, que se agitavam em algazarra e corriam gesticulando por fora do arame, enquanto as viaturas entravam no perímetro que lhes estava vedado, estabelecendo à distância contacto visual com os militares que desciam das viaturas, e se dirigiam aos camaradas instalados, que se preparavam para sair.
Dos primeiros contactos entre militares nasceu a explicação da agitação civil: as mulheres eram as lavadeiras que, na rendição da tropa, procuravam novos patrões.
A organização sócio-económica daquela comunidade era um caso sui-generis resultante da combinação dos poderes arbitrários duma administração autoritária com a adaptabilidade imposta pelo instinto de sobrevivência.
Tal como nos foi contada, a história de Quiximba começou alguns anos antes no Quanza-Sul, quando uma violenta sublevação dos nativos levou as autoridades a tentar cortar o apoio de retaguarda aos revoltosos, limitando-lhes o acesso às famílias,
Mulheres e crianças foram carregadas em vários camiões, e transferidas para mais de 300 km de distância, para uma terra de ninguém, suficientemente isolada para ser fácil o seu controlo.
Assim nasceu Quiximba, que, quando lá chegámos, registava uma população de cerca de mil mulheres, outras tantas crianças, e cinco ou seis dezenas de homens, maioritariamente velhos.​
Estava naturalmente instalada uma economia de sobrevivência, onde as mulheres retiravam das lavras os géneros de que subsistiam. 
Dinheiro só entrava de duas maneiras: o pagamento da lavagem de roupa pela tropa, e a venda de farinha de mandioca ao comerciante branco, que em troca lhes fornecia as outras poucas outras coisas de que dependiam. Cada quilo de farinha era vendido a um escudo e, para a maioria, era o resultado do dia de trabalho que restava depois das lavras e dos filhos


Cada militar pagava mensalmente umas dezenas de escudos pela lavagem da pouca roupa que mudava regularmente, e sendo um trabalho leve, principescamente pago pelos padrões locais, a disputa de clientes era feroz.​ Um milhar de mulheres disputava uma centena de homens...
​​Gerou-se e sedimentou-se uma ética do negócio, que obrigava cada lavadeira a trabalhar apenas para um cliente. Para valorizar a qualidade do serviço oferecido (e, talvez, compensar a falta de homens na povoação, cujos contactos com o exterior eram muito limitados), convencionou-se que a lavadeira seria também propriedade sexual do patrão, o que, na gíria local era definido como um serviço abrangente, eufemísticamente designado "lavar a roupa e o quico".
Por isso as mulheres, tão produzidas quanto a sua miséria lhes permitia, se mostravam aos recém-chegados, na esperança de que a perspectiva da lavagem do quico se sobrepuzesse à questão da roupa, e lhes garantisse serem escolhidas.
Claro que, as mais velhas nem tentaram misturar-se nessa competição perdida à nascença, ficando à distância a ver o combate, algumas meditando por detrás do seu cachimbo, talvez pensando nas consequências duma rotineira relação entre as mulheres locais e os passantes militares. 
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Foi um ano sereno, com ambas s partes (militares e nativos) a respeitar as regras do jogo, mas, quando abandonámos o local, já depois do 25 de Abril. e com a descolonização a dar os primeiros passos e a instalar as primeiras confusões entre angolanos, era para nós um dado adquirido que, passado o tempo da ocupação branca, a populaçao dsviada seria devolvida às origens, reconstituindo na medida do possível as famílias desfeitas, e retomando o curso da vida normal.
Quiximba deveria ser hoje uma memória varrida do mapa, um espaço devolvido à natureza pela população realojada.
Não é exactamente assim:
Qualquer pesquisa pelo nome de Quiximba remete-nos para evocações militares, parecendo confirmar o desaparecimento da povoação com o fim da intervenção portuguesa, mas a verdade é que a povoação está lá, embora escondida pela substituição de nomes e grafias levada a efeito pelas autoridades angolanas.
Surgem algumas menções a Kicimba, que parecem referir-se ao mesmo local, e, mais recentemente, a Kinximba, no município do Tomboco, que não pode deixar de ser a "nossa" Quiximba.
Notícias da Angop em 2007 descrevem Kinximba e Kinzau como zonas do Tomboco ainda fortemente minadas, provocando mortes na população, e isso ajuda a perceber porque é que, ao contrário de outros sítios (Santa Isabel, ao que parece) a intervenção dos portugueses na área não foi liminarmente apagada, apenas rebaptizada.
A saída dos portugueses não foi seguida por um período calmo, onde se pudesse pensar e rectificar os desequilíbrios gerados. Pelo contrário, o período subsequente foi convulsivo, descambando numa longa guerra civil que destroçou ainda mais as precárias vias de comunicação e agudizou as divisões internas. Movimentos maciços eram impensáveis, continuando as populações confinadas e ainda mais limitadas.
Tentando adivinhar, a pista aérea é hoje terreiro de cubatas, a pele do comerciante e do administrador mudou de cor, o quartel foi arrasado ou usado para instalar as novas autoridades ou escolas, mas Quiximba continua lá, respondendo hoje pelo nome de Kinximba, e porque foi há pouco festejado o alcatroamento de N'Zeto a Mbanza Kongo, isso significa que os turistas saudosos podem fazer os 217 quilómetros de Ambrizete a São Salvador do Zaire, atravessando Tomboco, Quiximba, Zau Évua e Quiende, sem receio das minas que ainda por lá dormem.
Pelo caminho, podem aproveitar o bónus turístico de saber o que são Quiza, Cana, Finda, Baca, Cumbi, Lemo ou Quindeso, nomes que aparecem no percurso, mas nada dizem à maioria de nós


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