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terça-feira, 8 de maio de 2018

""Procura‑se traçar as linhas gerais que no discurso crítico histórico, político, sociológico e literário levaram a considerar a guerra como um fenómeno não exclusivamente masculino. Dentro da situação portuguesa, visa‑se interpretar o “papel de apoio” que sempre esteve reservado às mulheres, de um ponto de vista público e privado, e analisar com mais detalhe a situação das mulheres portuguesas que acompanharam os maridos em missão militar em África, durante o período da Guerra Colonial.""




domingo, 6 de maio de 2018

Dia da Mãe na Guerra Colonial



Venceslau Fernandes: "Fui para a guerra colonial e levei a bicicleta numa mala"



Excerto duma entrevista de Venceslau Fernandes


Para onde foi na tropa?

Fui para Lisboa, e daí para o Ultramar. Fui para a guerra em Angola e deu-me na cabeça em levar a bicicleta comigo. Não disse nada a ninguém, desmonteia-a toda e escondia-a numa mala. Fomos no Vera Cruz, em Julho de 1967, fez agora 50 anos.

E como é que foi lá?

Fui para o quartel em Luanda e pus-me a montar a bicicleta cá fora na parada. E nisto passa lá um fulano a levar cervejas para o quartel, ele era o distribuidor da cerveja Nocal e director do ciclismo do Benfica de Luanda. Viu-me lá com a bicicleta, foi ter comigo para saber quem eu era e quando lhe disse que já tinha feito duas Voltas a Portugal foi falar com o capitão para eu ficar pela cidade e correr pelo Benfica de Luanda. Ele falou com o comandante do destacamento, que era irmão do Mendes Pedroso, o director da equipa de ciclismo do FC Porto, e lá fui correr. Comecei a treinar de manhã e à tarde fazia os meus serviços no quartel. Fui ao GP Nocal e fiquei em 2º lugar, a chegada foi no estádio dos Coqueiros. A partir daí praticamente tinha tudo para poder dedicar-me ao ciclismo. Também estive no mato, debaixo de fogo, mas ficava quase sempre em Luanda. Participei em várias corridas e no ano seguinte ganhei o GP Nocal.

Depois voltou para Portugal?

Sim. O major Mendes Pedroso propôs-me um contrato com o FC Porto para ir correr a Volta a Portugal, ia ganhar 3.500 escudos por mês, o que era uma fortuna. Estava a preparar as coisas para ir correr pelo FC Porto, no Verão de 1969, e vim mais cedo para Portugal para ir correr o GP Robbialac. Só que a descer a serra da Arrábida, vinha fugido com mais dois corredores, estava muito nevoeiro e fomos contra um carro parado numa curva. Caí e parti o úmero. Fui para o Hospital Militar e fiquei lá 60 dias. Já não fui para a Volta a Portugal e acabei por não assinar contrato pelo FC Porto, porque o Mendes Pedroso já não estava lá.

sábado, 5 de maio de 2018

Ex-combatentes guineenses com dificuldades de sobrevivência em Portugal

Não se sabe ao certo quantos são os que estão em Portugal. Entre os antigos combatentes guineenses que, nos anos 60 e 70, participaram ao lado das tropas portuguesas na guerra colonial, há quem esteja a viver na miséria.
A propósito do quadragésimo aniversário da independência da Guiné-Bissau, que se assinala dia 24 de setembro, a DW África foi conhecer a história de alguns antigos combatentes guineenses que vivem em Portugal. Um deles é Racido Bari. Vive sozinho em Queluz-Belas, nos arredores de Lisboa. Foi soldado, telegrafista de Infantaria "na área das comunicações militares. Esta era a minha especialidade. Vim para aqui em 1989".
Veio de Bissau com o objetivo de reunir os documentos necessários e requerer ao Ministério do Exército a constituição de um processo sumário por ter sido ferido em combate. Mas a resposta dada pela instituição portuguesa foi que "não podiamos ter a documentação, como bilhete de identidade. Teriamos que ficar aqui 6 anos, como cidadãos estrangeiros", conta Racido Bari.

Uma causa menos justa
Já Julde Jakuité, outro dos feridos de guerra, mora com a mulher no concelho do Seixal, na outra margem do rio Tejo. "Sou furriel graduado no Exército Português e na altura, no tempo da guerra, diziam que o furriel recebe um ordenado compatível com o dos brancos". Jaquité faz parte da Associação dos Antigos Combatentes da Guiné-Bissau em Portugal. Como ele, há colegas seus que vivem também em situações difíceis. Conta que "muita gente está a morrer. Alguns estão com problemas de trombose por causa dos nervos". Outros sofrem "de traumas de guerra". Jaquité afirma que "é a dificuldade que faz isso".
Julde e Racido são dois antigos combatentes guineenses que serviram o Exército Português na guerra colonial. Na altura, a Guiné-Bissau era uma província de Portugal, considerada a mais difícil das três frentes de operações das Forças Armadas Portuguesas, onde estiveram 42 mil soldados. Entre estes, os guineenses que lutaram juntos no mesmo cenário de guerra contra as tropas do PAIGC (Partido para a Independência da Guiné e Cabo Verde).

Os relatos de então confirmam isso, onde se pode perceber que a diferença de cor não contava porque o ideal era o mesmo. "Os primeiros homens seguem os guias naturais da Guiné. São voluntários como os outros. Vieram oferecer-se às nossas tropas e passaram a lutar ao seu lado convencidos de que estavam a servir uma causa justa", ouve-se no relato.

Mas, passados estes anos todos, os direitos de muitos dos soldados ou milícias recrutados localmente foram ignorados. Desprezados até, como nos diz Luís Graça, furriel do exército português na companhia africana, entre 1969 e 1971. A falta de reconhecimento dos direitos dos militares guineenses é para Luís Graça " uma coisa que me doi a mim enquanto português e antigo combatente e amigo dos guineenses". Para ele "esse problema não foi resolvido e portanto, há muitas situações dramáticas lá e cá. Lá ainda pior..."

Fotografia de época do antigo combatente Luís Graça com os seus colegas guineenses.

Governo Português não cumpriu o Acordo
Lamentam os militares guineenses que o Governo português não cumpriu o Acordo de Argel de 1974. O acordo diz que Portugal pagará as pensões de sangue, de invalidez e de reforma a quaisquer cidadãos da República da Guiné-Bissau por motivos de serviços prestados às Forças Armadas Portuguesas. Devido às alterações da lei ao longo dos anos, há casos de ex-militares portugueses, angolanos, moçambicanos e guineenses que não são considerados deficientes das Forças Armadas, consoante o grau de invalidez, refere Jakuité. "Alguns até não conseguem resolver os problemas da junta médica," porque apesar do hospital militar ter dado a confirmação na altura que essa pessoa esteve internada, o governo exige testemunhas.
Mas Jakuité questiona o motivo do governo as exigir, "quando a maioria dos comandantes já morreu, os sargentos, os alferes morreram", então "como é que esta pessoa vai resolver o problema dele?" E por este condicionamento, o antigo combatente afirma que "há algumas pessoas que ficam ali 4, 5, 6 anos à espera que a pensão seja paga".

O antigo combatente guineense, Racido Bari, foi soldado, telegrafista de Infantaria "na área das comunicações militares" e hoje vive com dificuldades.

Pensões de invalidez na ordem dos 400 euros

Há companheiros há vários anos à espera que o Governo Português lhes atribua uma pensão de invalidez. Alguns recebem na ordem dos 400 euros mensais. É o caso de Racido Bari. "Eu vivo aqui com dificuldades enormes, porque eu pago a renda sozinho, só para mim, 150 euros. Mas o que posso fazer? Não tenho outra alternativa".


Jakuité vive com 530 euros e tem o seu processo arquivado na Procuradoria Geral da República. Considera que tem havido um tratamento de injustiça comparado com colegas portugueses. Conta que "hoje um posto de furriel ganha à volta de 1000 euros, e a mim, nem me pagam o posto que eu tinha. Estou mesmo revoltado com isso".

A falta de dignidade depois do serviço cumprido

Depois dos sacrifícios consentidos nos anos dramáticos de guerra, exigem ser tratados com dignidade. Luís Graça refere que não se pode generalizar o problema, mas reafirma que ainda existem cidadãos guineenses que lutam para serem reconhecidos os seus direitos. "O problema mais dramático, até por razões culturais, é o problema de integração dos guineenses, que foram antigos soldados portugueses e nunca houve uma política orientada para os ajudar, para os integrar, para haver um reconhecimento dos seus direitos" como "os direitos de reforma". Afirma que houve alguns que o conseguiram como "Marcelino da Mata, é um exemplo de um homem guineense, militar que acabou por ser integrado, e hoje é coronel do Exército Português." Contudo, Luís Graça sublinha que "o caso do Marcelino da Mata é uma excepção, não é a regra."

Ex-combatentes guineenses com dificuldades de sobrevivência em Portugal

Os antigos combatentes não colhem simpatias no seio do PAIGC (Partido para a Independência da Guiné e Cabo Verde). Das autoridades da Guiné-Bissau não esperam qualquer apoio. A responsabilidade, reafirmam, é do Governo português, através da Direção Geral de Pessoal e Recrutamento Militar do Ministério da Defesa, que acompanha os respetivos processos. A DW África solicitou uma reação a propósito, mas, por razões burocráticas, continua a aguardar por uma resposta.

Entretanto, a DW África apurou, perante o impasse na solução destes casos, que um grupo de antigos combatentes guineenses está a preparar condições para interpor uma ação judicial contra o Estado português junto de instâncias internacionais, entre as quais o Tribunal de Haia.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

Ex-combatentes angolanos abandonados

Muitos ex-soldados angolanos que combateram contra o colonialismo português e na guerra civil que terminou em 2002 enfrentam hoje sérias dificuldades. Os baixos subsídios que recebem não chegam para as despesas diárias.


O feriado é assinalado todos os anos em Angola. O dia 4 de fevereiro de 1961 é considerado um marco importante no combate ao colonialismo português em África. Mas a data não reúne consenso entre o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a Frente de Libertação Nacional de Angola (FNLA), dois dos três movimentos que lutaram pela libertação de Angola. O MPLA defende que foi a 4 de fevereiro que começou a luta armada. A Frente de Libertação Nacional de Angola diz que foi a 15 de março.
Polémicas à parte, em comum todos têm uma questão: a valorização dos ex-militares. Cinquenta e seis anos depois do início da luta armada, muitos antigos combatentes vivem praticamente na miséria.
Antigos combatentes angolanos vivem na miséria
Luís José Vatas, de 67 anos, foi guerrilheiro do Exército de Libertação Nacional de Angola (ELNA), o antigo braço armado da FNLA.
Reclama uma maior dignificação dos veteranos da luta armada e considera irrisórios os vinte mil kwanzas (cerca 111 euros) que recebe do Estado.
Diz que não chegam sequer para suprir metade das suas necessidades. "O próprio Presidente disse que os soldados do ELNA não têm direito a estar inscritos na caixa social. Só devem receber vinte mil kwanzas, que não chegam", lamenta o antigo combatente, que dá graças por ter aprendido ainda muito jovem o ofício de sapateiro. Hoje, é isso que o ajuda a sustentar a família.

Abandonados

Luís António combateu pelas FAPLA, Forças Populares de Libertação de Angola, afetas ao MPLA. Hoje diz estar votado ao abandono e sobrevive com a ajuda da família. A esposa deixou-o por causa das dificuldades financeiras. "Ela foi para a casa da mãe dela e levou os dois filhos", conta.
Luís António, ex-soldado das FAPLA

O antigo combatente faz biscates no bairro onde mora. Mas apesar dos esforços que faz para contribuir para as despesas de casa, é a tia, vendedora de carvão com quase 80 anos, que se sacrifica para alimentar a família. "Se ela não vender carvão ou petróleo, não fazemos nada, não podemos fazer refeições", diz.

Domingos Maurício fez parte do braço militar da UNITA, as Forças Armadas de Libertação de Angola (FALA), movimento militar criado por Jonas Savimbi. Diz que não se justificam as dificuldades por que têm passado os antigos combatentes dos três movimentos de libertação.

Acusa ainda o Governo de estar a marginalizá-los. "Os antigos combatentes já não têm valor, só estão a valorizar os que estão a entrar agora. Se o Governo soubesse que antes destes estão os que começaram a guerra, deveria resolver a situação dos antigos combatentes"m sublinha Domingos Maurício.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Ex-combatente - algumas das armas que utilizava



Este era o arsenal de armas ligeiras que os militares a título individual tinham que carregar para defender as cores de Portugal na guerra em África. A espingarda G3 com as respectivas munições, 100 cartuchos no total, 1 dilagrama, dispositivo que se colocava na ponta da espingarda para disparar uma granada a uma distância maior da que permite o lançamento manual, com cartucho propulsor sem bala, 1 granada defensiva, 1 granada ofensiva e 1 pistola Walter geralmente utilizada por militares com funções de comando.
Nesse tempo tínhamos a força da juventude e armados assim, éramos respeitados e vangloriados. Hoje, os ex-combatentes são desprezados, descartados, porque as armas que têm são as bengalas, canadianas, andarilhos. Na sua grande maioria, reformados, aposentados, com problemas vários a nível da saúde física e mental, alguns mesmo sem-abrigo e não há quem lhes dê a mão.
Ultimamente, em alguns discursos oficiais têm-se ouvido referências aos ex-combatentes, mas não passam de palavras ocas, sem qualquer consequência na prática. Não conheço um Estado que trate com tanta negligência os seus veteranos de guerra. As Associações de ex-combatentes fazem o que podem, reivindicam os direitos que acham justos, mas o poder político assobia para o lado.s SEP (suplemento especial de pensão) ou CEP (complemento especial de pensão) no valor máximo de 150 euros/ano ainda sujeitos a IRS são uma afronta a toda a classe. Não seria melhor que quando chegasse o mês de Outubro, data em que essa esmola é acrescentada à reforma/pensão, todos os ex-combatentes a devolvessem à procedência, a cada um de nós não faz grande diferença, mas o bolo poderia servir para dar a alguns “pobres” reformados que andam por aí muito queixosos, como o caso dos do BdP (Banco de Portugal) a quem o tribunal mandou devolver com juros os 13º e 14º meses de 2012, porque afinal a Lei que os abrange não permite tal corte.
Que eu saiba, todas as reformas/pensões atribuídas, o foram baseadas em normas legais em vigor, mas por que razões só podem ser alteradas ou revogadas para certas classes deixando outras sagradas, imutáveis, irrevogáveis?

Às bengalas, às canadianas, aos andarilhos …

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Zau Évua - Os sons, as imagens e os cheiros

Não custa acreditar que os sons, as imagens e os cheiros da guerra ainda andam por cá.
E assim vão perdurar.
Qualquer avião em todo semelhante aos DO 27 ou aos Cessena que passam frequentemente próximo do local onde vivo, me fazem recordar os Revis ou a chegada dos viveres frescos e do  correio a Zau Évua.
As imagens da planície  alentejana em alguns momentos relembram a imensidão das terras de Angola.

Até o cheiro característico da terra quente quando suporta um aguaceiro. traz viva a recordação dos dias assim em Zau Évua

Como se diz - é a vida no subconsciente. 

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Tramagal - Memorial de homenagem aos combatentes do Ultramar

Um memorial em homenagem aos combatentes de Tramagal que participaram na chamada Guerra do Ultramar foi inaugurado no dia 21 de Abril. Localizado na Rua do Mercado, frente ao Largo dos Combatentes da Grande Guerra, o monumento apresenta três placas de pedra representando os três ramos das Forças Armadas, onde estão gravados os nomes dos vários países referentes à Guerra no Ultramar. Inclui um memorial com a inscrição “Para que a memória não se perca”, referente ao combatente do Tramagal João Lourenço Nunes, o único militar da freguesia que perdeu a vida na Guiné, em Fevereiro de 1968.

quarta-feira, 25 de abril de 2018

25 de Abril


Angola - Lista das Unidades envolvidas na Guerra


A Wikipédia faz um detalhe pormenorizado em listagem, das unidades Militares envolvidas na Guerra do Ultramar, que pode ser consultada aqui.
Desde o início da guerra ao até ao seu fim, como resultado da revolta dos Capitães, pode verificar-se o enorme contributo das unidades da Metrópole com centenas de milhares de homens na defesa das antigas províncias ultramarinas.

Que fique para a História o contributo heróico da grande maioria desses militares.
Muitos morreram, outros regressaram incapacitados e muitos outros ainda hoje continuam a "saborear" os resultados da guerra.

terça-feira, 24 de abril de 2018

José Niza andou por aqui

 

COMO NASCEU UM DISCO

 

Esta é a capa do LP "Fala do Homem Nascido", etiquete "Orfeu", edição de Arnaldo Trindade & Cª., Lda, Porto. Novembro 1972.

Um belíssimo disco da música portuguesa, um disco de referência.

 

Poemas de António Gedeão

Músicas de José Niza

Interpretações de Tonicha, Samuel, Carlos Mendes, Duarte Mendes.

Arranjos e Direcção de Orquestra de José Calvário

Gravação de orquestra nos estúdios Celada (Madrid) por Pepe Fernandez, Enrique Rielo e Vinader.

Gravação de vozes nos estúdios Polyson (Lisboa)

Produção de José Niza

Arranjo gráfico de Beatriz Morais Alçada

Fotografias de Álvaro João

 

José Niza conta:

 

"Zau Évua (Norte de Angola).

Abril-Maio de 1970.

 

O correio da guerra trouxe um livro. "Poesias Completas", de António Gedeão. "Para musicar. Um abraço. Cambezes". Quase automático. Gedeão é um dos poetas mais musicais (musicáveis) da língua portuguesa. E a sua poesia, minha velha amiga. Esses poemas, a angústia, o estar aqui, a viola, as noites, os estilhaços de um povo, o torniquete equatorial, a medicina artesanal, o resto, tudo tornaram fácil. Tão fácil, como sentir o arame farpado rasgando a pele dos sentidos. Tudo tomou, também, um repentino sentido. Não eram poemas isolados, mas uma história, o que estava ali escrito. E a história, e a poesia, eram demasiado belas para que a música as estragasse. Havia o Homem. Havia uma história. Havia um palco: a Vida. Eu daria apenas um pouco de música e um pouco de ordem. Mas, o importante, era o Homem. Mesmo à dimensão de uma rodela negra, num rodopio de 33 voltas por minuto.

 

Do início ("numa qualquer manhã, um qualquer ser, / vindo de qualquer pai, / acorda e vai, / como se cumprisse um dever") até "vestidos de surrobeco / e acocorados no chão", vai um salto de 20 séculos. Um drama em tempo de LP. Um disco pensado alto. Este o esquema, o funil, o encurralar da ovelha. Sob uma macieira de plástico, o homem nascido-em-qualquer-parte diz donde vem e o que quer:

 

"Venho da terra assombrada

 do ventre da minha mãe;

não pretendo roubar nada

nem fazer mal a ninguém".

Mas avisa:

 

"Não há poder que me vença

 mesmo morto hei-de passar".

 

Assim começa a fala do homem nascido. O pior é que o mundo não é o que devia ser. Há o desencanto do desencontro. O diálogo não passa de monólogo. As palavras são, apenas, sons. Para isto, mais vale "morrer atolado / na mais negra solidão". (A esta indiferença, a esta fácil aceitação da fatalidade, chamava Roger Vaillant, em "La Loi", "se portugalizer"). No entanto, nem tudo está, ainda, perdido. Acredita-se, mesmo por detrás da angústia, das contradições e de um quotidiano feito de misérias e esperanças, que "todo o tempo é de poesia". Há uma dinâmica permanente entre "bombas que deflagram / corolas que se desdobram / corpos que em sangue soçobram / vidas que a amar se consagram". O Homem acaba por ganhar o desafio, palmo a palmo, dia a dia, calo a calo: "Tenho sofrido poesia... / dói esta corda vibrante / a corda que o barco prende... / se vem onda que a levante / vem logo outra que a distende / não tem descanso jamais". Uma vitória adiada. Um volte-face do disco, um percurso do geral para o particular. Entramos em Portugal.

 

Todo um (saudável) culto do passado, construído sobre um saudosismo que ainda dói – "Poema da Malta das Naus" – é, a um tempo, homenagem, crítica e incitamento ao Homem Português de ontem e de hoje. O marinheiro quinhentista "moldou as chaves do mundo", mas toda essa epopeia teve (e tem) o seu preço, o preço trágico de uma "lágrima de preta". Este o drama dos descendentes da malta das naus: a ciência diz-lhes que a lágrima não tem "nem sinais de negro / nem vestígios de ódio". Mas... e daí? De que vale a ciência da análise, se o Homem Nascido não está preparado para a aceitar? Bastará a ciência ao Homem para que ele se humanize? Filipe II (que aqui se cognomina de Manuel I) tinha tudo, tudo! "Mas o que ele não tinha / era um fecho éclair". É isto que dói ao Homem Nascido: o não ter coisas tão aparentemente simples e possíveis como um fecho éclair. Jamais a felicidade completa. Sobretudo por ser conseguida à custa da felicidade dos outros. "Lágrima de Preta" é o primeiro poema que, no disco, se dirige à mulher.

 

A Mulher Portuguesa, mulher em vias de desenvolvimento, é hoje, talvez, o exemplo recente de uma nova forma de alienação. Ao fazer-se uma (demagógica) promoção da mulher, inaugura-se um moderno processo de a escravizar: a escravidão pelo trabalho desumanizado. E escravidão não só à dimensão da sociedade, mas na intimidade da sua própria vida (trabalho, casa, filhos, marido, trabalho... um ciclo vicioso infernal que uma vez iniciado não pode parar). "Calçada de Carriche" é um hino à escravidão da mulher-mártir, frágil máquina suburbana que o quotidiano da cidade suga. Mulher, máquina, máquina, que o vertiginoso e breve amor dos domingos evade para as auto-estradas, na doce ilusão de o novo mundo dos sentidos não ter segundas-feiras...
A evasão dá-se. "Leonor, Leonoreta, fuge, fuge, vai na asa de lambreta", com o único rumo de fugir a si própria, numa ilusória felicidade, fugaz como a paisagem que a lambreta rasga.

 


O cerco aperta-se. O Homem torna-se cada vez mais circunscrito. De um trilião de homens passa-se para o grupo e, finalmente, para o indivíduo, para o homem concreto, com nome, residência e tudo. "Álvaro Góis / Rui Mamede / filhos de António Brandão / naturais de Cantanhede...". Eles vivem, existem, são. Em Braga ou em Olhão, no Alentejo ou na guerra, eles lá estão! "Vivos", "vestidos de surrobeco" e "acocorados no chão", eles estão em toda a parte. No chão, mas ainda vivos... Eis a "Fala do Homem Nascido"!

ELE nasceu numa qualquer manhã e não há poder que o vença. Mesmo morto há-de passar!

 

Lisboa, Novembro de 1972.

 

Dois anos e meio passados, o disco fez-se.

 

No caminho ficaram muitas ideias, entre as quais o entusiasmo de amigos como o Rui Ressureição e o Manolo Diaz, que, comigo em África, quiseram esperar por mim. Como muitas vezes acontece, novas oluções surgiram, entre as quais a que o talento e a inteligência  de José Calvário trouxeram a todo este trabalho.

Que António Gedeão me desculpe algumas amputações que fiz aos seus poemas, determinados por razões musicais

 

Que, dos erros que houver, me ataquem a mim.

 

P.S. – Para o Eduardo Cambezes;

           Para ouvir. Um abraço. Niza."

Confraternização de 2018


Convém ter em conta o seguinte:

Local próximo de auto-estrada
Preços da ementa com ou sem bolo aniversário
Número de lugares entre 100 e 120
Saber antecipadamente quantos os presentes
Tipo de reserva a fazer e com que antecedência
etc, etc.


E Depois do Adeus - Paulo de Carvalho


 Entre muitas outras canções foi o autor de E Depois do Adeus, tema interpretado por Paulo de Carvalho



Sete vidas são as que vivi até agora. E 70 os anos que espero completar em Setembro próximo. Antes de percorrer convosco os sete caminhos desta saga de andarilho, deixem-me proclamar que estou agradecido à vida. A verdade é que a vida me correu bem, tive sorte, encontrei a mulher certa, tenho três filhos que só sabem dar alegria aos pais, tive até a felicidade de viver o 25 de Abril de 1974. Quase tudo o que me aconteceu não foram coisas que perseguisse, ou que correspondessem a projectos de vida.
À excepção da minha mulher e da opção pela Medicina, tudo o resto veio ter comigo, paulatinamente enriqueceu e comandando a minha vida. Nunca me passou pela cabeça ser deputado, ou director de programas da RTP, ou escrever cerca de 300 canções, ou estar dois anos numa guerra. Por tudo isto agradeço à vida o que me deu. Não tenho livro de reclamações a não ser para lutar pelos direitos dos pobres, dos humildes e para que haja mais justiça e solidariedade em Portugal.
Comecemos então pelo princípio. Em 16 de Setembro de 1938 fui nascer a Lisboa, na Maternidade Alfredo da Costa, mas rapidamente regressei a Portalegre onde o meu pai era engenheiro da Junta Autónoma das Estradas. Primeiro filho, primeiro neto e primeiro sobrinho de tias e tios solteiros, a minha chegada ao mundo fez de mim um pequeno príncipe. Cedo, muito cedo, me apaixonei pela vida no campo. A apanha da azeitona e dos figos. As vindimas, as ceifas e as debulhas em Campo Maior, na eira do meu avô, onde comia gaspacho fresquinho com os ganhões, nos dias tórridos de Agosto.
Aos 6 anos mudámo-nos para Santarém, onde fui matriculado na 1ª classe da escola do Salvador.
Aos 7 fiz o meu primeiro discurso político! D. Adélia, a minha professora, tinha-me escolhido para falar na inauguração da nova escola de S. Bento, onde botariam discurso as figuras gradas da política local. Convinha que um menino animasse a cerimónia. Li uma folhinha escrita pela professora (que a minha mãe guardou).
Saí-me bem, mas não fazia ideia do que tinha dito. Muitos anos depois a minha mãe mostrou-me a tal folhinha. Seria difícil tecer maiores elogios a Salazar! Depois foi o Liceu. No exame do 2º ano dispensei das provas orais. O único, entre mais de 1 200 alunos de todo o distrito.
O meu pai ofereceume uma linda bicicleta e eu lá ia pedalando à volta do Liceu, enquanto os outros faziam as orais.
Mais ou menos por essa altura, com uns 12 anos, fui a um baile no Clube de Santarém e conheci uma loirinha de olhos azuis, muito bonita e muito tímida. Mal sabíamos então o que aquele encontro iria significar nas nossas vidas. Aos 14 anos comecei a tocar guitarra, aprendendo por discos de 78 rotações de Artur Paredes.
Santarém tinha uma sólida e saudável tradição académica, naturalmente de matriz coimbrã. E foi por isso que escolhi Coimbra para estudar Medicina, uma das melhores opções da minha vida. Para além de Medicina aprendi coisas que moldaram a minha forma de ver as coisas, a democracia, e conheci amigos de uma geração até hoje não repetida.
Em 31 de Dezembro de 1960 o dia do assalto ao quartel de Beja o meu pai morreu inesperadamente.
Tive de suspender os estudos durante três anos para tratar dos negócios da casa. Foram tempos difíceis para os quais não estava preparado.
Em 1966 concluí o curso e três meses depois casei-me com a tal loirinha de olhos azuis, que entretanto se tinha transformado numa das mulheres mais bonitas que conheci.
Ficámos a residir em Coimbra onde nasceu a nossa primeira filha. Apaixonei-me pela Psiquiatria e fiz a tese de licenciatura sobre esquizofrenia.
Em 1969 fui mobilizado para a Guerra Colonial, em Angola, como alferes-médico.
Dois anos nas matas, muitas canções escritas e um alto louvor militar por actos médicos.
No regresso, em 1971, optei por ficar a residir em Lisboa. Trabalhava à tarde como director de produção da editora Arnaldo Trindade (Zeca, Adriano, Paulo de Carvalho, Mário Viegas, etc.) e de manhã no Hospital Miguel Bombarda.
O 25 de Abril foi um dia em que o tempo parou para que a felicidade durasse mais tempo. Soube entretanto que E depois do adeus tinha servido de senha musical para que Salgueiro Maia e os outros capitães de Abril saíssem dos quartéis.
Foram assim minhas as primeiras palavras dessa histórica noite. Filiei-me no PS de Santarém, sem qualquer propósito de ser candidato à Assembleia Constituinte e, muito menos, deputado eleito.
Mas foi o que aconteceu.
Deixei em suspenso o Hospital e a Psiquiatria, convencido de que, uma vez aprovada a Constituição, para lá voltaria. Seria uma coisa de meses... Mas, afinal, foram muitos anos parlamentares, interrompidos por duas passagens pela área do tratamento das toxicodependências, uma delas de dez anos, e outras duas pela RTP, primeiro como director de programas e depois como membro da Administração. Em 2002 aposentei-me da função pública e adquiri um novo e excelente estatuto: nem horários, nem patrões.
O único cargo que actualmente exerço é o de presidente da Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores.
Televisão - Ser director de programas e administrador da RTP foram experiências exaltantes.
O poder e a responsabilidade de decidir que programas Portugal iria ver (ainda não existiam TV's privadas) era um grande peso diário sobre os meus ombros. Em 1977 não tinha qualquer experiência de televisão, mas tinha uma ideia de qual deveria ser o papel de uma televisão de serviço público. Desse período fi caram programas históricos como Gabriela a primeira telenovela apresentada em Portugal A visita da Cornélia e A Feira, programas culturais como Se bem me lembro, de Vitorino Nemésio, Música e Silêncio, de António Vitorino de Almeida, Melomania, de João de Freitas Branco. Ou, para os mais novos, Peço a Palavra, de Mário Viegas, Heidi ou Os Marretas.
Em 1978 fui obrigado a pedir a demissão quando percebi que estava em curso uma manobra para colocar na cúpula da RTP pessoas da confiança política e pessoal de Ramalho Eanes, então Presidente da República. Regressei em 1983.
E desses quase dois anos, ficaram séries como O Tal Canal, do Herman José, Palavras Ditas, do Mário Viegas, a telenovela Chuva na Areia, Viva a Cultura, do António Mega Ferreira, Jogos sem Fronteiras, o Concurso 1, 2, 3, do Carlos Cruz, Mátria, da Natália Correia, etc. Penso, no entanto, que o melhor que deixei na RTP foi a recuperação do seu arquivo, salvo de uma inundação (1978) e transferido, em três dias, para as instalações onde ainda hoje está.
Política - Tudo começou nos tempos de liceu. A insuportável Mocidade Portuguesa, os contínuos informadores da PIDE. Mas também, em contraponto, a quase clandestinidade conspirativa do Cine-Clube. Logo que cheguei a Coimbra tive o meu baptismo de fogo com uma carga da GNR, por causa de um protesto estudandil contra o decreto 40.900, que retirava autonomia à Universidade.
A PIDE inaugurou a minha ficha em 1961, ano em que muitas coisas decisivas aconteceram em Portugal. Em Coimbra a minha luta contra o regime foi sobretudo feita através da música, com José Afonso, Adriano, no Jazz, ou no teatro académico (CITAC) com música para peças que acabavam sempre proibidas.
Em 1974, o 25 de Abril inverteu finalmente a ordem anormal das coisas. A campanha eleitoral para a Constituinte foi a mais exaltante experiência política da minha vida. Cheguei a iniciar, com a Maria Barroso, um comício em Constância, às 3 da manhã! Estive 15 anos no Parlamento, presidi a várias comissões, apresentei algumas leis de minha iniciativa. Cumpri também dois mandatos no Conselho da Europa. Hoje olho para a Assembleia da República com algum desencanto: melhoraram as gravatas, mas rareiam as ideias.
Música - O meu bisavô José Niza foi um excelente compositor erudito e director de orquestra. O meu avô João Niza tocava flauta. E a minha mãe, piano. A música era uma espécie de oxigénio que se respirava lá em casa. Durante o Liceu comecei a aprender guitarra. Depois, em Coimbra, foi o fado, acompanhando Luiz Goes, Machado Soares, Zeca Afonso. Com o Zeca e o Adriano foram as baladas líricas e depois a canção de intervenção.
E ainda o Jazz. Como não sabia escrever música, só comecei a compôr quando apareceram os gravadores de cassetes. A maior parte das minhas cerca de 300 canções filas no final dos anos 60 e na década de 70, para vozes como Adriano, Paulo de Carvalho, Carlos do Carmo, Carlos Mendes, etc. Mais recentemente, para Mísia e Kátia Guerreiro.
Ganhei quatro Festivais RTP da Canção, um recorde que divido com Ary dos Santos. Um deles, com E depois do adeus, a primeira senha musical do 25 de Abril
PS. O José Carlos de Vasconcelos foi claro e taxativo - máximo 9.000 caracteres! Como já os gastei, não há mais papel para escrever sobre a Guerra Colonial, a Psiquiatria e outras vidas que vivi. Dommage



Faleceu,  aos 75 anos, o músico, em Lisboa, o músico, letrista, médico e ex-deputado socialista José Niza. Entre muitas outras canções foi o autor de E Depois do Adeus, tema interpretado por Paulo de Carvalho. Republicamos acima a 'autobiografia' que escreveu para o JL