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terça-feira, 12 de maio de 2020

Traumas de guerra perduram na memória e nas famílias dos ex-combatentes

Traumas de guerra perduram na memória e nas famílias dos ex-combatentes


A Guerra do Ultramar ceifou vidas, destruiu famílias, minou casamentos. No 90º aniversário do núcleo de Vila Franca de Xira da Liga dos Combatentes, cinco famílias partilharam com O MIRANTE as feridas invisíveis que o conflito causou.

Ex-combatentes da guerra colonial reencontraram-se no âmbito do 90º aniversário do núcleo de Vila Franca de Xira da Liga dos Combatentes e 4º aniversário do monumento que lhes presta homenagem, naquela cidade. Na cerimónia, realizada a 8 de Setembro, na Fábrica das Palavras, em Vila Franca de Xira, Joaquim Chito Rodrigues, presidente da Liga dos Combatentes, lamentou que o Estado se tenha esquecido dos “homens que ainda hoje sofrem por terem estado na guerra”.

Esquecidos, abandonados, sem apoio nem reconhecimento do Estado. Foram estas as ideias e mensagens que marcaram os discursos do presidente do município, Alberto Mesquita, e do presidente da Junta de Vila Franca de Xira, João Santos. Nos 90 anos do Núcleo, o município quis distinguir o trabalho meritório que esta associação tem desenvolvido, atribuindo-lhe, na pessoa do seu presidente, Armindo Silva, a medalha de honra municipal.

Há vários anos que esta iniciativa se realiza, juntando dezenas de ex-combatentes dos três ramos das Forças Armadas que relembram histórias e ainda choram ao ouvir falar da guerra. Recordam as partidas forçadas. O dia do adeus às namoradas, a quem fizeram juras de amor apressadas. No final da cerimónia, cinco ex-combatentes partilharam com O MIRANTE histórias de guerra, das suas famílias e casamentos marcados pela violência doméstica ou pelo silêncio de quem quer esquecer episódios que a memória não apaga. O stress pós-traumático é ferida que não sara.

Levar a guerra para casa

Miguel Barão, ex-paraquedista, foi um dos que levou a guerra para dentro de casa. A disciplina militar, a autoridade e a violência. O alvo principal passou a ser Maria do Céu Ferreira, com quem casou em 1975. Sentados lado a lado, choram os dois ao recordar. Maria do Céu sofreu anos de violência física e psicológica. Foram várias as vezes que pensou em pôr fim ao casamento e confessa que foi pelos filhos que não o fez. Têm sete filhos, entre os 25 e os 43 anos. “Sempre fui um pai muito autoritário, disciplinador, às vezes abusivamente”, conta Barão, 69 anos. Se era violento? O ex-combatente tira a boina verde da cabeça e responde: “Era mais forte que eu”.

Combater era o seu papel. Era matar ou ser morto. O primeiro homem que viu morrer tinha 20 anos. “Estávamos numa emboscada. Caiu-me nos braços”. Episódios trágicos como esse são parte do stress pós-traumático que carrega. Foi treinado para ter auto-domínio e enfrentar o inimigo sem medo, por isso não gosta de mostrar fragilidades e evita falar do assunto. Chegou a receber acompanhamento psicológico no Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos mas abandonou as consultas. Vive em Alhandra e diz ser hoje um homem mais controlado mas ferido por dentro.



Os pesadelos da guerra

Nem todos procuraram ajuda médica e esta também não foi ter com eles. Júlio Vicente regressou da Guiné em 1972 e refugiou-se no silêncio. “Guardo para mim as histórias que ninguém quer contar e ninguém quer ouvir. Custa-me recordar e sei que nunca vou conseguir esquecer”, diz. As lágrimas correm-lhe rosto abaixo.

É nos sonhos que regressa à Guiné. “No dia 1 de Fevereiro de 1971 pensei que ia morrer debaixo de fogo ou da fome”, conta. Na casa, em São João dos Montes (Alhandra), a guerra continua a ser assunto tabu. “Não faço perguntas. Só a neta agora vai fazendo algumas”, diz a esposa, Margarida Vicente, que o acompanha sempre nestes encontros. As cartas e aerogramas que o marido lhe escreveu, queimou-as. “Não queremos voltar a ler o que nos magoa”, afirma.

António Francisco, 80 anos, foi marinheiro e serviu em Angola, entre 1967 e 1974. Estava casado há três anos quando embarcou a primeira vez e deixou Joaquina grávida de oito meses. Ao terceiro dia de combate foi baleado na perna direita. Dormia na embarcação, no leito do rio Zaire, carregada de mortos e de feridos esfomeados e por tratar. O ex-marinheiro nunca foi agressivo com a mulher, a não ser enquanto dormia. “Tinha pesadelos de atirar com ela fora da cama. Pensava que estava a empurrar um camarada num ataque”. Deixa cair a cabeça e chora. “Ainda esta noite sonhei com a guerra”, diz.

Dizem que no amor e na guerra vale tudo. No de António valeu a paciência de Joaquina - já falecida - que apesar do pânico tentava compreender as reacções do marido. “Como na noite em que peguei na espingarda e disparei contra a parede da cozinha para matar uma osga”, na casa onde vive, em Vila Franca de Xira.


Ferido no dia que regressava a Portugal

Maria Teresa Oliveira nunca compreendeu porque é que o marido se atirava para o chão sempre que ouvia um foguete. Só quando Mário Oliveira começou a partilhar episódios que viveu no mato, em Moçambique, é que percebeu que estava a lidar com um homem marcado pela guerra. O ex-combatente refugiou-se no álcool e passava muito tempo fora de casa. Piorou com o passar dos anos.

Mário foi ferido em combate, a 11 de Novembro de 1971, o dia em que ia regressar a Portugal. “Faltavam apenas 22 quilómetros até ao cais, quando o comboio foi atacado”. Lembra os corpos caídos e o dinheiro ensanguentado no bolso do motorista. É esta imagem que lhe invade os sonhos e o faz acordar em pânico. “E a fome que passámos, o que sofremos. Passar 20 dias no mato e ter de comer carne de hipopótamo porque não havia mais nada”, refere. Ainda hoje continua a fazer o percurso do Forte da Casa, onde reside, até ao Hospital Júlio de Matos.


Atira-se ao chão com os foguetes

Adriano Fonseca viu morrer à sua frente um camarada, num ataque ao aquartelamento, protegido apenas por duas fileiras de arame farpado. “Não consigo esquecer, ainda sonho com isso”, diz o ex-soldado da Póvoa de Santa Iria que combateu na Guiné de 1970 a 1972. Foi seguido por vários psicólogos para tentar travar o pânico. “Sempre que rebentava um foguete atirava-me para o chão”. E confessa que já perdeu a conta às vezes que acordou aos gritos e a empurrar a mulher.

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