Gil Manuel Pereira Francisco tem 64 anos e é natural da Póvoa do Forno, conselho de Oliveira do Bairro. Filho de um casal bairradino com oito filhos, foi militar na tropa portuguesa durante dois anos e nove meses. Em 1972 foi combater para a Guerra do Ultramar, na Guiné-Bissau, onde esteve durante dois anos. Atualmente está reformado, depois de ter tido uma empresa de construção civil, e reside na freguesia da Palhaça, também pertencente ao Conselho de Oliveira do Bairro. É casado, tem três filhos e três netos. De uma forma sucinta, a guerra da Guiné corresponde ao período de confrontos entre as Forças Armadas Portuguesas e as Forças organizadas pelos movimentos de libertação das antigas Províncias Ultramarinas de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique entre 1963 e 1974. Esta é a história de um ex – combatente da Guerra do Ultramar.
O que o levou a entrar na Tropa Portuguesa?
Nada me levou a entrar para a tropa, entrei porque fui obrigado. Naquela altura eramos obrigados a ir à tropa. Toda a gente, ninguém escapava.
O que é que se sente quando se é chamado para combater no Ultramar?
A minha primeira reação foi, com certeza, um bocado assustadora. Tive muito medo porque aquilo não era brincadeira, já era uma guerra a sério. No ano em que eu fui, em dezembro de 1972, a Guiné já estava numa guerra a sério.
Mas algum dia pensou em ir combater para guerra?
Depois de lá estar, combater era o meu papel. Mas antes de ir para lá nunca me passou pela cabeça. Aliás, naquela altura, se pudesse fugir antes de ir, não ia. Alguns iam como voluntários, mas eu não, eu ia como combatente obrigado.
Ir para a guerra e pensar que podia não voltar vivo é, com certeza, um pensamento difícil e assustador. Pensou nisso muitas vezes?
Ai quantas vezes! Pensava nisso principalmente quando saíamos. Quando íamos para saídas perigosas para o mato pensava nisso muitas vezes, tanto eu como os meus colegas. Era muito complicado, mas tentávamos abstrairmos disso apoiando-nos uns aos outros.
Ao chegar ao local e ver o quão diferente é de Portugal, o que lhe passou pela cabeça?
Ora bem, aquilo a única diferença que tem de Portugal é o calor. A Guiné a nível de província era muito pobrezinho, não tinha nada. As populações viviam praticamente à custa da tropa, era a tropa que lhes fornecia o arroz, açúcar, enfim, os bens alimentares necessários. E isto tudo porque eles não podiam semear nada. Os terroristas destruíam tudo, portanto eles não cultivavam e o governo português é que lhes fornecia a comida praticamente toda.
Quanto tempo, no total, esteve na Guerra da Guiné?
Estive na guerra exatamente 21 meses.
O que é que mais lhe custou fazer enquanto esteve a combater?
O que mais me custou foram as saídas noturnas para o mato. Sempre que ia podia estar à espera de encontrar ou não o inimigo. Também foi muito difícil a altura dos bombardeamentos, tínhamos muito medo, porque não sabíamos quando íamos ser bombardeados. Quando as bombas começavam a cair ao pé de nós, muitas das vezes perdíamos a noção do tempo, foi muito complicado e assustador.
No que é que pensava nos momentos de maior aflição?
Pensava sempre na minha família, porque tinha sempre aquele medo enorme de não conseguir chegar vivo para junto das pessoas que mais gostava, daquelas que são mais importantes para mim (silêncio). Agarrava-me também muito à Nossa Senhora, porque, ainda hoje, tenho fé e sou muito crente. Mas pronto, tinha que me habituar a estar longe e mentalizar-me de que as coisas podiam correr bem ou mal. Depois de lá estar já estava pronto para tudo e por tudo, tinha e não tinha medo, ia em frente como se nada fosse. Lá no fundo tinha sempre um bocadinho de receio, mas de qualquer das maneiras tinha que me habituar.
Há imagem que nos chocam e nos marcam para o resto da vida. Viu muita gente morrer?
Morrer não vi, porque na altura em que a minha companhia esteve nos ataques a sério eu estava em Bissau, então fui simplesmente visitar alguns companheiros ao hospital, onde um deles inclusivamente já não tinha pernas nem braços. Mas ver morrer, não vi ninguém.
E momentos de descontração, havia?
Ah isso havia muito. Era mais ao fim do dia, nós fazíamos as nossas farras para esquecer tudo (risos).
Como é que vivia o povo da Guiné?
O povo da Guiné estava praticamente sempre com a tropa. Quem dá pão é amigo, nós dávamos e eles estavam connosco. Aliás, quando viemos embora, depois do 25 abril, houveram pessoas pretas, pertencentes ao povo da Guiné, que disseram que se matavam se viéssemos, porque, no fundo, éramos nós que os ajudávamos.
Achou a guerra justa?
A guerra justa ou não justa, era na altura a pressão sob a política. Na altura foi justa porque era para defender o que era português, o resto sobre a política isso aí já era um bocadinho mais complicado, porque nós não tínhamos a abertura e a comunicação que temos hoje, o conhecimento era pouco. As nações unidas não queriam, mas guerra colonial queria que Portugal desistisse. Mas a guerra começou com a morte de muita gente e nós, tropas, tivemos que ir para lá para meter ordem naquilo, para assegurar a segurança da população.
Viveu ou conheceu alguém que tenha tido um problema traumático pós-guerra?
Houve muita gente nessas circunstâncias. Aliás, um colega meu que, infelizmente, já morreu. Quando voltou para Portugal vinha maluco, chegou a andar nu em Lisboa. Com situações deste género foi para o manicómio e, entretanto, morreu.
Foi militar durante quanto tempo?
Fui militar durante 33 meses, ou seja, dois anos e nove meses.
Não viu os seus amigos camaradas morrer, mas se tivesse visto, tinha tido vontade de largar tudo para os conseguir ajudar, mesmo sabendo que podia morrer a qualquer momento?
Eu ia ajudar sem problema nenhum! Uma vez não estava de serviço, era domingo, e na véspera à noite a companhia foi atacada e ao outro dia de manhã foi a tropa africana fazer a segurança à estrada e depois, um colega meu disse-me que um negro se estava a sentir mal e pediu para o ir ajudar, porque dizia que eu era um gajo cheio de sorte. Eu fui sem problema nenhum e fomos 8 num camião Mercedes e nós andamos por ali fora e, ainda por cima, era um dia em que havia futebol. Era um jogo do Sporting contra o Benfica e a malta a ir para o local a discutir o futebol. Não sabiam o sitio para onde iam, só eu e o meu colega é que sabíamos e como eles estavam a fazer muito barulho eu disse-lhes para não fazerem muito barulho, porque o barulho era uma das coisas que nos localizavam e nós tínhamos que ir o mais discretos possível. Fomos andando e nunca encontramos ninguém, até que chegamos ao fim da estrada, que era onde tinham sido atacados à poucas horas, e vimos que os africanos não estavam lá e era ali que deviam estar. Quando voltamos para trás já os fomos apanhar à saída do quartel, não tive medo nenhum em ir socorrer o camarada.
Quando sentiu que a guerra estava a chegar ao fim, qual foi a primeira coisa em que pensou?
Quando senti que a guerra ia acabar deu-se o 25 abril. A partir daí pensamos logo que ela iria acabar e só queríamos vir embora o mais rápido possível, porque nós só queríamos voltar para casa, para ao pé das nossas famílias.
Como é voltar são e salvo para junto da família?
É, sem dúvida, uma grande alegria. Tanto para nós como para a família. Voltar para casa sãos e salvos é sinónimo de estar em segurança. Chegar a casa e ver que chegamos ao nosso conforto e aos braços daqueles de quem mais gostamos é a melhor sensação que se pode sentir quando se regressa da guerra.
Que género de perguntas lhe faziam quando chegou da guerra?
Normalmente as pessoas pouco ou nada perguntavam, porque não queriam tocar muito no assunto. No fundo sabiam que nós também não gostávamos de falar, porque a guerra é uma coisa que nos marca de uma forma muito profunda.
Nessa altura já namorava?
Não. Só encontrei realmente o amor da minha vida depois de vir da guerra.
Voltava a ir combater para a guerra?
Se fosse necessário e por uma causa justa, com certeza que não tinha problema nenhum em ir, ia com certeza e sem dúvida.
Acha que a guerra de hoje em dia é igual à de antigamente?
Não, é muito diferente. Os anos avançaram e as coisas e métodos também.
O que é que mudou?
Mudou a maneira de fazer a guerra. Atualmente é totalmente diferente. Agora existem máquinas, existe artilharia e outros meios que quando precisam atacam só onde querem. Embora saibam onde estão os inimigos e atirem as bombas para o sítio certo, antigamente não era assim.
Tendo em vista que foi militar, o que mudaria no serviço militar português?
Para o serviço militar de hoje em dia só vão voluntários, por isso devia continuar a ser obrigatório e fazia bem a toda a gente. Agora é diferente, a noção de ir para a guerra ou não já vai de pessoa para pessoa. Pelo menos meio ano devia ser obrigatório, nem que seja só para a disciplina.
Hoje, sendo pai e avô, gostaria que os seus filhos e netos fossem para o serviço militar português?
Para a tropa eu gostava, para a guerra não.
Porque não para a guerra?
Na guerra já se correm muitos riscos e na tropa é diferente. A tropa não fará mal a ninguém, nem que seja apenas meio ano só para se ver e sentir o rigor, a disciplina e o saber e obrigação das coisas. Para a guerra só devem ir os que são obrigados ou então aqueles que têm muita força e valentia para se voluntariar.
Tem alguma história que queira contar?
Histórias há muitas, mas algumas a gente só quer esquecer (silêncio). Tudo aquilo pelo que passamos na vida são histórias que ficam e que nos marcam, sejam elas positivas ou negativas. Estar na guerra e vivenciar todo aquele ambiente é uma grande história. Mas é uma história que, na maior parte das vezes, queremos guardar só para nós, porque marcou-nos de uma forma muito pessoal e intimista.
Sara Pereira (texto)