Como se fosses um director de jornal, fica à tua responsabilidade a publicação deste meu devaneio.
Se achares bem fazer alguma censura, estás autorizado.
Um abraço.
João Rego
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Caros amigos,
As fotos de Ambrizete despertaram em mim sentimentos e recordações a um tempo nostálgicas e pesarosas.
Ambrizete foi a última localidade onde pernoitámos antes de seguir para o Lufico. A viagem até aí não se me havia apresentado carregada de perigos. Eram os benefícios da ignorância, apesar de tudo.
Mas foi na missão de Ambrizete que um dos oficiais, já com a sua farda amarelada indiciadora da sua veterania, melhor dizendo, do fim da sua comissão de serviço, ao saber do meu destino, me deu uma pancadinha nas costas e desejou-me muita sorte. Aí, aqueles meu apêndices esféricos que nos homens são referências de masculinidade e “portanto” de fortaleza, reduziram-se à sua ínfima dimensão. Não sei se inconscientemente levei as mãos ao sítio para comprovar a situação.
Dia seguinte, depois de organizada a coluna na qual se incorporavam alguns elementos da população civil, mormente mulheres e crianças, lá seguimos. A presença daqueles civis proporcionou-me alguma calma. Com os diabos: se eles ali iam, até bem humorados alguns...
Mas em Ambrizete, por muito curta que tenha sido a paragem, tinham ficado os meus olhos e a minha ilusão. Em Luanda já me tinha apercebido da força telúrica de África, porém a pequenez daquela povoação à beira Atlântico e a promessa de uma vida calma ao compasso da natureza, deixou-me completamente subjugado. Até a sonoridade do seu nome; Ambriz já soava bem, mas Ambrizete, nome de mulher, um regaço tranquilo, uma promessa de amor na praia, uma refeição de marisco ou peixe, eu sei lá. Seria o meu espírito a querer esconjurar os medos que trazia comigo?
Durante a comissão passei em Ambrizete não mais do que três vezes. Numa delas instalei-me no hotel. O quarto em que pernoitei tinha uma imprescindível, estética e ecológica rede mosquiteira. Desfrutei de um belo passeio à beira mar e da comida do hotel.
Havia uma peculiar atmosfera social naquele hotel. Creio que todos os quartos se situavam no andar superior e no rés-do-chão o salão do restaurante e bar. Uma senhora já na terceira dezena de anos vividos, que creio era a dona, deambulava pelo salão dando as boas vindas aos comensais, quase todos militares vindos do “puto”, deslocados do seu habitual meio social. Creio que era apelidada de “madrinha”, provavelmente à semelhança das madrinhas de guerra que apoiavam muitos dos militares em comissão de serviço naquelas e outras paragens de África. Entravam e saiam fardas. Além de hotel era também o clube social do sítio. (Choca-me ver a foto actual desse estabelecimento)
Um encontro com dois agentes da Pide que tinham estado no Lufico, sem que eu me tivesse apercebido da razão da sua estada, conduziu-me às instalações daquela polícia. Aí compreendi a razão do convite: apresentaram-me um farrapo humano correspondente ao que tinha sido um assalariado na nossa companhia no Lufico. Tinha a alcunha de Kit Carson. Tinha sido relacionado com uma emboscada, ocorrida, salvo erro, num troço da estrada entre Ambrizete e Ambriz, a uma brigada da Junta de Estradas. Para lhe sacar informações tinham-no deixado de rastos. Eu, naquela situação teria confessado que o sol é quadrado e que o Papa era uma mulher... Agarrou-se a mim como se eu fosse o Cristo e ele o paralítico do episódio bíblico. E eu nada fiz, senão estender-lhe a mão. Paralisei. Nem me lembro se equacionei os benefícios que eu próprio poderia sacar da actividade policial, na medida em que as hipóteses da minha intervenção bélica ficariam bastantes reduzidas.
Aos agentes interessava que eu registasse a eficiência da acção da polícia para segurança das forças armadas portuguesas em luta contra as forças independentistas, na época simplesmente apelidadas de terroristas. Registada ficou. O que não apurei foi se o Kit Carson realmente estava implicado na emboscada ou se os agentes tiveram necessidade de apresentar serviço.
E por que haveria de ser Ambrizete, aquele regaço tranquilo, a proporcionar-me esta visão?
Regressar para descobrir as feridas, as rugas? Não sei se quero. De momento agrada-me poder ver as fotos de antes e de agora.
A minha gratidão para o responsável pelo envio das imagens e para o organizador do blog.
Saudações do Lufico
João Rego “
Nota da redacção do Blog
Não é, nem será nunca nossa intenção censurar o que quer que seja nos escritos dos nossos leitores, em especial, naqueles que foram nossos companheiros de armas.
Vamos ficar na expectativa de mais escritos seus de vez em quando.