Parte de uma entrevista de Moita Flores ao Jornal I de hoje
Depois veio para Lisboa e casou muito cedo. Porquê?
A guerra, nessa altura, fazia dessas coisas. Era o medo de morrer. O medo da morte. O desejo de deixar um legado. A guerra transtorna por completo as nossas relações com o mundo. Vocês têm uma sorte dos diabos por não saberem o que é isso.
Esteve na guerra?
Não. Cheguei a ir, mas não cheguei a estar na guerra, porque entretanto deu--se o 25 de Abril. De qualquer forma, a guerra estava muito presente na nossa vida. Tinha dez anos quando começou e durou até ter 22. Por outro lado, a guerra também nos ensina a sentir como é bom não viver em guerra. Às vezes, quando me deparo com pessoas belicosas, sobretudo as mais jovens, não há paciência... porque... a morte cheira mal, sabe? Os cadáveres cheiram mal. O que nos afasta da morte é o caminho que nos pode dar felicidade e permite que a gente se encontre de uma forma amistosa. A morte traz-nos sempre uma mágoa, seja directa seja indirecta. Magoa sempre, é uma amputação. Por isso as guerras e o crime violento são coisas que precisamos de resolver. Hoje tenho a minha memória cheia de mortos, de cadáveres, de gente podre. Só no cemitério de Macedo de Cavaleiros identificámos e levantámos 1400 cadáveres. Na Aldeia da Luz, 600. Aprendi uma coisa decisiva: não podemos perder um minuto da nossa vida, porque tudo é rápido e efémero. Devemos tentar fazer que a vida seja um minuto de construção de coisas que agradem aos outros e a nós também. A nossa relação com quem nos rodeia tem de ser pautada por aquilo que a morte nos tira: o toque com o outro, o corpo. A relação com o corpo. Morrer não é fechar os olhos e parar o coração. Morrer é a ausência do abraço e das palavras. Isso é que é morrer.
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