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domingo, 9 de junho de 2019

A LOGÍSTICA DE PORTUGAL NA GUERRA SUBVERSIVA DE ÁFRICA (1961 A 1974) I



A LOGÍSTICA DE PORTUGAL NA GUERRA SUBVERSIVA DE ÁFRICA (1961 A 1974)


Capitão
Pedro da Silva Monteiro


1. Introdução

Entre 1961 e 1974, Portugal esteve envolvido num conflito militar de cariz subversivo no continente africano contra os movimentos independentistas, no qual se procurou assegurar a sua presença através da força militar. A manutenção do império colonial era condição essencial para a sobrevivência do regime[1] e, no entender de muitos, de Portugal enquanto nação independente[2]. Neste contexto, o regime utilizou diversas estratégias no esforço de manter intactas as suas possessões em África, onde se destaca a presença permanente da manobra logística, “o fator vital da guerra”[3]. Na realidade, Portugal mantinha anualmente uma média de mais de 100.000 homens em armas em três teatros de operações (TO)[4] distintos, e separados entre si e da sua principal base de sustentação logística por milhares de quilómetros[5]. A guerra envolveu operações de combate[6] e operações logísticas[7] realizadas em larga escala, e de apoio às populações em Angola, a partir de março de 1961, na Guiné, após 1963, e em Moçambique, após 1964. Devido a todas as insuficiências em recursos naturais, demográficos e financeiros, a sustentação das operações militares revelava-se difícil, pelo que a manobra logística desempenhou um papel fundamental na consecução desse objetivo. Neste sentido, a análise do esforço logístico realizado por Portugal durante a guerra, torna-se fundamental para melhor se compreender o esforço operacional, os seus resultados práticos e a realidade da guerra. Pretende-se deste modo, contribuir para desvendar o que o historiador António Telo afirma ser um “verdadeiro enigma histórico”[8], quando se refere à capacidade de Portugal ter conseguido permanecer em África até 1974, e que John P. Cann classifica como “um notável feito de armas”[9].
A questão central deste trabalho é saber: em que medida a manobra logística de Portugal influenciou as operações militares nos três TO e contribuiu para a sustentabilidade da Guerra Subversiva de África, de 1961 a 1974?
Da questão central derivam outras questões que vão dar corpo ao trabalho: qual a estrutura logística de Portugal antes e durante da guerra? Que dificuldades sentiram os serviços de apoio logístico de Portugal e quais os maiores problemas verificados? O que esperava o governo português do sistema logístico? Quais as necessidades sentidas pelas forças em operações, e que abastecimentos foram fornecidos? Que apoios logísticos recebeu Portugal do exterior? Como é que os serviços de apoio logístico se adaptaram às exigências operacionais e que implementações foram feitas?
Este trabalho inicia-se em 4 de abril de 1949, data da adesão de Portugal à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), destinada a legitimar a aceitação internacional do regime e a garantir o “indispensável apoio exterior” ao rearmamento e modernização das Forças Armadas (FA)[10], necessário para a manutenção das “províncias ultramarinas”[11], e termina com a queda do regime em 1974.
O estudo irá iniciar-se com um enquadramento geopolítico e estratégico de Portugal antes da Guerra em África, seguindo-se a evolução logística portuguesa desde a adesão à OTAN até ao início da guerra, tendo como pano de fundo a sustentação das operações militares. Posteriormente, caracterizam-se as dificuldades logísticas impostas pela guerra, a projeção para África, as necessidades exigidas em campanha e os apoios recebidos, seguindo-se a análise à adaptação da manobra logística de Portugal aos TO. Finaliza-se o estudo com umas breves conclusões, contemplando a forma como a manobra logística possibilitou a sustentabilidade da Guerra Subversiva em África.

2. Portugal: da adesão à OTAN à guerra em África

2.1. Enquadramento Geopolítico e Estratégico
No final da Segunda Guerra Mundial, Portugal saiu política e economicamente reforçado[12], com avultadas quantias em reservas de ouro e em divisas[13]. A vida política em Portugal era regulada pela Constituição Política da Republica Portuguesa de 1933, que sobrelevava a independência nacional como algo transcendente[14], pelo que o império colonial foi incorporado na Constituição através do Ato Colonial[15], que segundo o historiador Fernando Rosas, representou uma iniciativa legislativa para centralizar política, administrativa e financeiramente a gestão das colónias “num todo indivisível com a cabeça na Metrópole”, onde residia “a essência orgânica da Nação Portuguesa”[16]. Como consequência, aumentou a ligação entre a Metrópole e os territórios ultramarinos através do reforço das trocas comerciais no espaço económico português, com maior proteção aos produtos portugueses e com a contenção da industrialização das colónias[17]. Entre 1945 e 1953, é lançado um programa de investimentos vasto mas todo ele controlado pelo Estado Português e de aplicação gradual[18]. Em Portugal Continental, fizeram-se investimentos ao nível da política de obras públicas, preparando as infraestruturas necessárias ao desenvolvimento económico, nomeadamente no campo da indústria, e ao nível das comunicações e transportes[19]. Em Angola e Moçambique, investiu-se nos transportes, na agricultura, em barragens hidroelétricas e na exploração mineira de cobre e carvão. A refinação de açúcar aumentou 40% em Angola, a produção de álcool duplicou e os têxteis de algodão quadruplicaram no período compreendido entre 1949 e 1959[20]. A população branca aumentou, fundamentalmente por razões políticas[21], de modo a despertar o interesse internacional pelos territórios portugueses, numa época de crescente isolamento de Portugal face à sua política ultramarina.
No entanto, apesar das diferenças ideológicas entre Portugal e as democracias ocidentais, o Estado Novo não se colocou à margem do novo sistema económico ocidental do pós-guerra, acabando por assinar a convenção que criava a Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE) e solicitar um empréstimo da ordem dos 625 milhões de dólares, no final de 1948[22]. No âmbito do Plano Marshall, Portugal conseguiu que as colónias fossem abrangidas nos programas de ajuda norte-americana e conseguiu importantes apoios financeiros, “cerca de 90 milhões de dólares, um montante que serviu de catalisador para a sua economia”[23]. A integração de Portugal na Associação Europeia do Comércio Livre, European Free Trade Association (AECL/EFTA), em 1960, simbolizou a abertura aos mercados externos[24]. Portugal aderiu ainda ao Banco Mundial (BM) e ao Fundo Monetário Internacional (FMI)[25]. O impacto do capital estrangeiro na economia nacional permitiu o desenvolvimento de indústrias nos territórios ultramarinos, sustentado sobretudo por investimentos estrangeiros privados, nomeadamente da Bélgica, nas minas de diamantes, do Reino Unido, aplicado nos caminhos-de-ferro e dos EUA na exploração petrolífera. Este investimento somava, em 1961, cerca de 15% do capital fixo bruto do Ultramar, o que tornava as possessões ultramarinas economicamente viáveis, e aumentou para quase 25%, em 1966[26].
No plano internacional, o fim da Segunda Guerra Mundial conduziu à divisão do mundo em dois blocos antagónicos com dois polos de poder: os EUA e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O sistema internacional configurou-se como bipolar, passando o Reino Unido para segundo plano, resultando num permanente estado de tensão entre estes dois blocos[27] que ficou conhecido por Guerra Fria. Neste contexto, a URSS[28], “paralisada numa ação direta, adotou uma estratégia indireta” através do apoio a todas as insurreições, visando o “enfraquecimento do Ocidente”[29], liderado pelos EUA[30]. Esta agressão indireta e subversiva foi utilizada nos TO de Angola, Guiné e Moçambique, através dos apoios financeiros, de formação e em armamento à insurreição. Apesar do ambiente de tensão no sistema internacional, a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) pretendia inaugurar uma nova época de paz e convivência entre os povos, nomeadamente o fim dos sistemas totalitários e a implantação de regimes democráticos. Com a aprovação da declaração universal dos direitos do homem e consequente regra de “um homem um voto”, independentemente das condições, emergiu inevitavelmente o anticolonialismo, que resultou no reconhecimento à autodeterminação na vida social e, por extensão, o direito à autodeterminação dos povos[31]. Assistiu-se assim ao início da crise do sistema colonial português, com o “amadurecimento de um movimento que vinha de 1945”, materializado com a independência da Índia e Paquistão, em 1947, acelerando a retirada das soberanias coloniais de África. No entanto, esta retirada derivou de uma revisão da logística de cada império e não do reconhecimento das “maturidades políticas”[32].
Em 1949, ocorre a entrada ponderada de Portugal na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), com o objetivo de controlar a hegemonia da URSS através de uma aproximação aos EUA[33], numa altura em que o Reino Unido já não garantia as “funções tradicionais da aliança”[34]. Para Salazar, a manutenção da integridade dos territórios ultramarinos conviria aos ocidentais[35], pois tinha a “reservada convicção” que a Terceira Guerra Mundial era previsível[36]. Deste modo, durante a fase das negociações para a adesão à OTAN, procurou obter a inclusão das colónias no âmbito da defesa coletiva[37], argumentando que a importância estratégica de Portugal, permitiria controlar as mais importantes rotas marítimas no Atlântico Sul e a ligação entre o Índico e o Atlântico e, acima de tudo, em caso de uma invasão soviética, dava a “profundidade estratégica” à Europa, concedida pelos territórios portugueses em África[38]. Com esta adesão, Portugal conseguiu dois objetivos fundamentais: no campo político, obter a legitimação e a aceitação internacional do regime, e no campo militar, garantir o apoio exterior à execução do processo de rearmamento e modernização das FA iniciado antes do conflito ultramarino[39].
A Constituição de 1933 acabou por se concretizar na reforma de 1951[40], na qual foram substituídos os termos “império” e “colónia” e a designação “províncias” começa a ser aplicada aos territórios ultramarinos para defesa da tese integracionista[41]. Neste contexto, Portugal assinou ainda dois acordos de auxílio militar: o Acordo de Auxílio Mútuo para a Defesa, em 5 de janeiro de 1951, que regulava o fornecimento de equipamento militar norte-americano e sedimentava a defesa de Portugal no Atlântico Norte, e o Acordo de Defesa entre Portugal e os EUA, em 6 de setembro de 1951, que concedia aos EUA a base dos Açores em caso de guerra durante a vigência da OTAN[42].
Em 1953, a economia portuguesa sofreu reformas profundas e estruturais com a implementação do I Plano de Fomento (PF), aprovado pela Lei n.º 2058, de 29 de dezembro de 1952, destinado ao período de 1953 a 1958 que, embora fosse direcionado aos investimentos públicos, permitiu iniciar-se em Portugal uma séria industrialização. Seguiu-se o II PF, aprovado pela Lei n.º 2094, de 25 de novembro de 1958, destinado ao período de 1959 a 1964, que estaria em fase de implementação quando se iniciou a guerra em Angola[43].
O falhanço da operação anglo-francesa no Suez, em 1956, sob pressão dos EUA e URSS, revelou ao governo português a tendência, a curto prazo, para o desenvolvimento dos nacionalismos africanos[44]. Este afastamento norte-americano, levou a uma reorientação do esforço do governo português para a defesa do império, em detrimento da participação na OTAN. Os Decretos-Lei (DL) 41 559 e 41 577, aprovados no início de 1958, viriam a alterar a organização militar do império, com o aumento de efetivos, dispersão das forças ultramarinas[45], envio de militares dos quadros para as “províncias” para cumprir serviço de três anos e envio de oficiais portugueses para frequentar cursos de contraguerrilha no estrangeiro, nomeadamente na Bélgica, Espanha e França, embora em número reduzido, devido à falta de apoio dos EUA[46]. Na realidade, até 1958, a posição dominante em Portugal era a da inevitabilidade da Terceira Guerra Mundial, daí a organização, preparação e equipamento das forças terrestres ultramarinas seguirem os padrões convencionais destinados a atuar no TO europeu. Só após janeiro de 1959 é que a prioridade do “esforço militar passou da Europa para o Ultramar”[47], tornando-se oficial em agosto de 1959, com a aprovação de um memorando, elaborado pelo Conselho Superior de Defesa Nacional, onde se remetem para segundo plano os compromissos com a OTAN e os acordos com Espanha, as “duas principais preocupações da defesa nos últimos dez anos”, passando o “esforço de defesa do Ultramar” a assumir a prioridade[48]. Esta alteração de direção de esforço militar, além de problemas de mentalização, causou dificuldades de ordem financeira, devido à necessidade de uma remodelação profunda nas forças terrestres que possibilitasse o cumprimento das tarefas no Ultramar, e ao nível do equipamento, cujo material recentemente recebido ao abrigo do Mutual Defence Assistance Program (MDAP) não podia sair da Metrópole[49].
Deste modo, em 1959, “Portugal não possuía uma capacidade militar autónoma, com adequados níveis de prontidão e de sustentação das forças”, que garantisse a integridade do território nacional[50]. Para remediar a situação, com vista à possibilidade iminente de uma guerra subversiva em África, intensificou-se, no verão de 1959, o envio de oficiais ao estrangeiro no sentido de recolher conhecimentos de experiências nesta tipologia de operações, especialmente na Argélia. O resultado dos conhecimentos adquiridos materializou-se na criação do Centro de Instrução de Operações Especiais, em Lamego, em 1960, e na publicação por Portaria, de 9 de fevereiro de 1963, de nova doutrina e regulamentação: “O Exército na Guerra Subversiva”, em cinco volumes[51]. A nova doutrina refletia o conhecimento prévio dos aspetos que dominavam militar e socialmente a guerra, subordinada ao objetivo político de manutenção do império[52]. A consciência de que “a luta seria prolongada”[53], orientou as operações de contrainsurreição para a manutenção do “conflito a uma escala reduzida, lento e com poucas despesas”[54]. Desta forma, pretendiam-se alcançar dois objetivos fundamentais: permitir a sustentação da guerra por um longo período, e ganhar a confiança da população, através da sua proteção[55].


sexta-feira, 7 de junho de 2019

Angola - 1969*1971

12 de Julho de 1969
Ida

Na ida



Foi por um destes,
                     o dia ao certo, não posso recordar
se foi Sábado ou
Terça-feira
o interesse era voltar
muitos chegámos
alguns,
infelizmente,
por infame glória
indigna de enredo e de
historia,
por lá lhes foi ceifada a vida, que
lutámos,
na força da sua,
da nossa juventude
... os Deuses sempre ajudam uns . .



Ex-combatentes - Estatuto




quarta-feira, 5 de junho de 2019

Guerra Colonial - drogas IIII



1 Neste artigo, para simplificar, “consumo” e “uso” são usados como sinónimos.

2 A Guerra Colonial Portuguesa é também chamada Guerra do Ultramar ou Guerra de Libertação Nacional, se vista por outros prismas. Menos frequentemente, é também designada como Guerra(s) de África.

3 A pesquisa assenta em entrevistas não dirigidas (Devillard, Mudanó e Pazos 2012; Kvale 2006; Rubio 2006) realizadas com ex-combatentes do exército português que prestaram serviço na Guerra Colonial Portuguesa e foi complementada com uma recolha bibliográfica extensiva, focada essencialmente num conjunto de biografias, histórias de vida e relatos biográficos centrados na experiência de guerra em África. Num segundo momento, porque tal se justificou, estendeu-se a pesquisa ao ciberespaço (Calado 2006, 2009, 2013) e aplicou-se um inquérito online a ex-combatentes. O conjunto de narrativas e textos analisados é composto pelas entrevistas realizadas propositadamente, pelos textos editados em livro, pelos textos publicados no espaço digital que foram recolhidos e pelas respostas às perguntas abertas do questionário online, daqui para a frente designadas genericamente “testemunhos”. Alguns dos argumentos apresentados resultam da troca de ideias com o meu colega Luís Vasconcelos e também com os professores Miguel Vale de Almeida, Brian O’Neill e, sobretudo, Francisco Oneto, a quem estou agradecido.

4 Quando aqui se fala de “ex-combatentes” ou, mais genericamente, de “militares”, está-se a incluir somente aqueles que participaram na Guerra Colonial Portuguesa incorporados nas forças armadas portuguesas e a excluir os membros dos movimentos independentistas africanos. Da mesma forma, quando se fala em “militares portugueses” está-se a incluir militares africanos que lutaram do lado das tropas portuguesas.

5 Não foi o mesmo ter estado numa região pacificada ou numa região militarmente ativa, haver tido funções operacionais e cumprido missões no “mato” ou ficado cingido apenas a funções administrativas e não ter saído do quartel, por exemplo.

6 “Drogas” e “substâncias psicoativas” são aqui usadas como sinónimos e incluem todas as substâncias que, depois de ingeridas, condicionam o sistema nervoso central (estimulantes, depressoras ou alucinogénias), atuando sobre o estado de consciência, o humor ou, mais genericamente, o funcionamento cerebral. Neste sentido, tanto o álcool como a canábis, as duas substâncias discutidas neste artigo, são substâncias psicoativas. Ao contrário do sistema jurídico-legal, que separa claramente as duas substâncias, acompanha-se os argumentos de Geoffrey Hunt e Judith Barker (2001) de crítica à tradição das ciências sociais, e da antropologia em particular, de autonomizar o estudo de álcool e drogas ilícitas, criando duas tradições académicas distintas.

7 O discurso hegemónico acerca da Guerra Colonial Portuguesa tende a secundarizar ou omitir a experiência e a perspetiva dos militares de incorporação local – isto é, aqueles nascidos ou que viviam nos territórios africanos –, cujo número nas forças armadas portuguesas foi aumentando à medida que ia progredindo o conflito militar (Gomes 2013).

8 Os militares portugueses viram-se imersos num mundo “exótico”, tanto do ponto de vista do mundo natural como do ponto de vista cultural, exprimindo nos seus registos biográficos espanto, fascínio e consciência das diferenças na natureza e na vida dos povos africanos.

9 Alguns militares, por exemplo, relatam a experiência de comer camarão cozido pela primeira vez (Oeiras 2009). Por outro lado, bebidas como a Coca-Cola ou a Pepsieram de venda proibida na “Metrópole”, mas de venda livre nas “colónias”. Por causa disso, conta Vítor Santos, que participou na Guerra Colonial Portuguesa, em Moçambique, enquanto sapador de minas, “coca-cola [era o] nome dado pelos militares da metrópole aos naturais de Lourenço Marques” (2013: 112).

10 Excluem-se as chamadas “tropas especiais” – comandos, fuzileiros, paraquedistas, entre outras – de natureza ofensiva e com missões operacionais específicas, maioritariamente de ataque.

11 A experiência de guerra inclui casos de militares que não chegaram a disparar um tiro e / ou não se depararam com o inimigo uma única vez. Neste sentido, ter “ido à guerra” é mais do que a vivência operacional e militar.

12 Manuel Bastos inicia assim o seu livro Cacimbados: A Vida por Um Fio: “Chamavam esgazeados aos ex-combatentes da Grande Guerra e cacimbados aos da Guerra Colonial Portuguesa, associando os seus traumas, no primeiro caso às bombas de gás e no segundo ao clima de África” (2008: 9). Também Maria José Lobo Antunes, na sua recente etnografia de uma companhia militar que esteve em Angola entre 1971 e 1972, aborda a figura do “cacimbado”, designando-a como “uma suave loucura” responsável por tornar os “militares capazes dos mais impensados disparates” (2015: 150).

13 O Cancioneiro do Niassa consiste num conjunto de adaptações de fados e canções em voga (de Bob Dylan a José Afonso), que, de forma humorística e sarcástica, abordam a temática da Guerra Colonial Portuguesa do ponto de vista do soldado e das condições de vida. As adaptações foram feitas por militares portugueses estacionados na região do Lago Niassa, em Moçambique, e tornaram-se rapidamente populares em muitos quartéis de outras regiões, servindo como uma forma de contestação à ordem estabelecida e, sobretudo, à cadeia de comando.

14 De forma provocatória, “vício” é aqui entendido num duplo sentido: como algo que é considerado adictivo e compulsivo e, simultaneamente, como algo que desafia a moral e pode ser visto como transgressão e / ou um desvio às normas morais.

15 Como refere Luís Oeiras, no seu livro de memórias Mueda-Lua, a história política e social da Guerra Colonial é extensa e exaustiva, mas a dos combatentes não (2009: 9).

16 Na Guerra Colonial Portuguesa, de acordo com os testemunhos, a regra de não haver consumo de bebidas alcoólicas durante operações militares era genericamente cumprida. No entanto, alguns ex-combatentes confirmam a ingestão de bebidas alcoólicas durante saídas operacionais, não obstante tal ser consensualmente considerado algo perigoso e uma inconsciência.

17 A regra geral era que os quartéis portugueses em África tivessem espaços diferentes para praças e graduados comerem e beberem, acontecendo por vezes que sargentos e oficiais partilhavam o mesmo refeitório, mas tinham espaços autónomos para adquirir e consumir bebidas alcoólicas (messe de oficiais e bar de sargentos).

18 A pergunta era colocada antes de no questionário se falar de álcool e drogas, pretendendo-se, assim, evitar o enviesamento das respostas.

19 António Lobo Antunes, que entre 1971 e 1972, esteve presente na Guerra Colonial Portuguesa como médico militar em Angola, revela nas suas cartas enviadas de África para a mulher, entretanto reunidas em livro, o quão baratas eram vendidas as bebidas alcoólicas nos quartéis. De facto, embora não bebesse, o médico aproveitava para as comprar e enviar para Lisboa: “Como todos os meses compro uma garrafa, já vou em 4 de uísque. Vou agora mudar-me para os conhaques, gins, etc., de modo a que, quando voltar, tenhamos uma boa garrafeira. São tudo marcas ótimas, e saem a cerca de 100.00 cada. Parece-me que vale a pena” (2005: 175).

20 Por exemplo, os entrevistados tendem a associar o alcoolismo sobretudo a casos em que o consumo excessivo de álcool era um hábito anterior ao serviço militar. Por outro lado, alcoólico não era quem bebia muito, mas sobretudo quem bebia constantemente, quem “não sabia beber” ou não aguentava os seus efeitos e se embriagava recorrentemente (“maus vinhos”).

21 Em contrapartida, alguns ex-combatentes que estiveram na Guiné durante a Guerra Colonial Portuguesa referem o consumo, quase sempre experimental e esporádico, de noz de cola, fruto de plantas ricas em cafeína e com efeito estimulante, que era usado tradicionalmente em algumas regiões da parte ocidental do continente africano (Lovejoy 2007 [1995]).

22 Entre estas personagens-chave destacavam-se os soldados de incorporação local que serviam no exército português, e cujo número foi crescendo com o decorrer do conflito (F. Rodrigues 2012).

23 Tudo indica que, pelo contrário, em pontos nevrálgicos e de confluência dos militares – como a cidade de Mueda, em Moçambique –, a canábis tinha uma presença mais forte.

24 Assistiu-se à mesma resistência em abordar certos temas e ao traçar da “fronteira que separa o que deve ser lembrado do que deve ser esquecido” de que fala Maria José Lobo Antunes (2015: 374).

25 Na primeira página do Diário de Lisboa, de 11 de fevereiro de 1961, escrevia-se acerca do “grupo de alucinados” responsável pelos ataques: “alguns estavam verdadeiramente narcotizados […], outros teriam bebido fortemente e davam mostras da bravura inconsciente mas inefetiva dos etilizados, mas outros ainda teriam tomado coca-cola na qual dissolveram comprimidos de aspirina – que constitui uma espécie de droga barata e que produz uma embriaguez heroica”.

26 Cachipembe (ou caxipembe) é uma bebida alcoólica tradicional angolana, concretamente uma aguardente destilada a partir da fermentação de farelo de milho.

27 O termo “cafre” é de origem árabe, equivalente a “bárbaro”, e era usado na África portuguesa para designar povos depreciativamente considerados “incultos” e “infiéis”.

28 Em Uma Breve História da Cannabis em Portugal, Luís Torres Fontes e João Carvalho falam da improbabilidade que foi os europeus terem lidado “com a cannabis durante séculos sem se darem conta dos seus poderes psicoativos” (2011 [2002]: 176), o que só começou a mudar com a publicação em 1563 dos escritos do português Garcia de Orta sobre as plantas medicinais da Índia (Booth 2005).Top of page

References
Bibliographical reference

Vasco Gil Calado, « As drogas em combate: usos e significados das substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa », Etnográfica, vol. 20 (3) | 2016, 471-494.
Electronic reference

Vasco Gil Calado, « As drogas em combate: usos e significados das substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa », Etnográfica [Online], vol. 20 (3) | 2016, Online since 27 November 2016, connection on 05 June 2019. URL : http://journals.openedition.org/etnografica/4628 ; DOI : 10.4000/etnografica.4628Top of page

About the author

ISCTE-IUL; SICAD, Portugal

terça-feira, 4 de junho de 2019

Guerra Colonial - drogas III

Palavras finais

  • 25 Na primeira página do Diário de Lisboa, de 11 de fevereiro de 1961, escrevia-se acerca do “grupo de (...)
  • 26 Cachipembe (ou caxipembe) é uma bebida alcoólica tradicional angolana, concretamente uma aguardente (...)
46As drogas entram na Guerra Colonial Portuguesa desde o início: quando em 1961 se dão em Angola os primeiros ataques levados a cabo por independentistas ligados à UPA e ao MPLA, logo na imprensa portuguesa os “terroristas” são descritos como “bárbaros assassinos” e é feita uma “ligação sistemática ao consumo de drogas e ao recurso a feitiços” (M. J. L. Antunes 2015: 64).25 De facto, na altura foi repetidamente dito que os autores dos massacres agiam cegos e enlouquecidos, sob influência direta de canábis e cachipembe 26 (Wheeler e Pélissier 2009 [1971]; Valahu 1968).
  • 27 O termo “cafre” é de origem árabe, equivalente a “bárbaro”, e era usado na África portuguesa para d (...)
47Não era inaudita a relação entre canábis e violência em África (Bergen-Cico 2012). O caso mais frequentemente citado é o dos guerreiros zulus da atual África do Sul, que tinham por hábito fumar canábis antes de entrar em batalha (Toit 1975), prática que o explorador britânico David Livingstone registou no século XIX (James e Johnson 1996). Mas já antes disso, em 1767, o governador de Moçambique, Pereira do Lago, falava dos cafres da Ilha de Moçambique, que “bêbados de um fumo infernal e pernicioso se alucinam para toda a qualidade de homicídios” (citado em L. D. Antunes 2006: 205).27
  • 28 Em Uma Breve História da Cannabis em Portugal, Luís Torres Fontes e João Carvalho falam da improbab (...)
48A canábis circula pelo continente africano pelo menos desde o século XII, tendo sido inicialmente introduzida a partir da Ásia através de rotas de comércio árabes (Klantschnig 2014; Nahas 1982). Com o tempo, alguns povos africanos aprenderam a dominar os seus efeitos psicoativos e desenvolveram o seu consumo, nomeadamente de forma ritualizada (Emboden 1990 [1972]). Na Europa, pelo contrário, o consumo de canábis não se enraizou como costume cultural e é bastante recente (Pollan 2001), embora a sua utilização para fins comerciais, nomeadamente o aproveitamento das fibras do cânhamo, fosse quase milenar (Fontes e Carvalho 2011 [2002]).28
49Também o consumo de bebidas alcoólicas era algo fortemente enraizado em África: o álcool afirmou-se sempre como a substância psicoativa mais consumida por todo o continente africano, nomeadamente na forma de vinhos, cervejas e licores de fabrico artesanal (Ambler, Carrier e Klantschnig 2014; Medeiros 1988; Capela 1973). No entanto, durante a Guerra Colonial, as tropas portuguesas não demonstraram para com as bebidas alcoólicas africanas o mesmo interesse que devotaram à canábis: limitaram-se a experimentá-las, mas, salvo raras exceções, não as adotaram e muito menos pensaram em trocá-las pelas suas próprias, nomeadamente a cerveja e o whisky.
50Sensivelmente ao mesmo tempo que os soldados norte-americanos adotaram o consumo de drogas ilícitas na Guerra do Vietname, os militares portugueses depararam inesperadamente com a canábis num contexto de guerra, através das populações africanas negras. Experimentaram-na, deram-lhe uso, apropriaram-se dela e alguns trouxeram-na mesmo de volta a casa. De facto, alguns autores (Fontes e Carvalho 2011 [2002]) apontam os militares que regressavam da Guerra Colonial Portuguesa como os principais divulgadores do consumo de canábis (liamba) na “Metrópole” antes do 25 de Abril.
51Tudo isto se passou nos finais da década de 60 e inícios de 70 do século XX, altura em que o mundo ocidental iniciava uma “cruzada” contra as drogas ilícitas, assente no proibicionismo. Embora o primeiro tratado internacional de controlo de drogas tenha sido acordado em 1912, foram as convenções da ONU de 1961 e 1971 que definitivamente estabeleceram um novo paradigma. Se para todos os efeitos o consumo de drogas ilícitas em Portugal continental era praticamente inexistente (Agra e Fernandes 1993), é neste período que o tema emerge como objeto do discurso político (Poiares 1995) – por pressão externa e provavelmente em função do alarme suscitado com a associação entre drogas e subversão juvenil a que se assistia noutros países – e se tomam as primeiras iniciativas, que culminam com a campanha “droga-loucura-morte”, de 1972.
52Ao mesmo tempo que o poder político fazia assentar o seu discurso sobre as drogas ilícitas numa linguagem bélica e num conjunto de metáforas militares (guerra, combate, inimigo), longe de casa, as tropas norte-americanas e portuguesas consumiam-nas sem grandes consequências disciplinares e, muito menos, criminais. Mais do que isso, no caso português, os jovens envolvidos na Guerra Colonial parecem ter sido mesmo os primeiros a consumir a canábis de forma expressiva (se se excluir os jovens nascidos ou residentes nas então colónias portuguesas de Angola e Moçambique).
53De acordo com os testemunhos dos ex-combatentes, e pesem embora todas as dificuldades advindas de um tema manifestamente difícil e incómodo, pode dizer-se que os usos de álcool e canábis tinham o mesmo propósito: fazer esquecer, mesmo que temporariamente, a experiência da guerra e tornar possível a vida em tão duras condições. Para entender o consumo, é imprescindível conhecer as circunstâncias.
54O que a história dos usos de álcool e canábis por parte de militares portugueses envolvidos na Guerra Colonial releva é o papel absolutamente central das motivações de consumo, das normas, dos significados e do enquadramento social (Klein 2012; MacRae 2001; Zinberg 1984). Dito de outra forma, as drogas – sejam elas de caráter lícito ou ilícito – não se podem reduzir às suas propriedades farmacológicas, pois a sua ação está intimamente dependente dos referentes socioculturais dos grupos sociais que as utilizam, contrariando as visões dominantes assentes nas visões médicas e criminais (Milhet et al. 2011; Romaní 1999).
55Só assim se compreende que a canábis, uma droga que começa por ser tida como um “intoxicante” que instiga a violência do inimigo, seja mais tarde usada como uma fonte de “evasão” da violência do quotidiano. As drogas são sempre algo mais do que substâncias com determinadas propriedades farmacológicas, e o contexto histórico e social é tudo. Ou quase tudo.
56Em resumo, os usos de álcool e canábis na Guerra Colonial Portuguesa são mais um episódio da história das drogas assente nas trocas, no fluxo e na circulação dos produtos – neste caso, as bebidas alcoólicas que são levadas de Portugal continental para as (então) colónias africanas, incluindo as mais remotas áreas onde estivessem militares portugueses, e uma planta com propriedades psicoativas que circula das populações negras africanas para os quartéis portugueses. E é uma história que, para ser compreendida, deverá ser contada atendendo, por um lado, ao contexto político, social e económico e, por outro, às experiências e às motivações dos consumidores. É esse o desafio da antropologia num terreno minado como é o campo das drogas, há muito tempo dominado pelo biopoder.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Guerra Colonial - drogas II

Usos de álcool e outras drogas

  • 15 Como refere Luís Oeiras, no seu livro de memórias Mueda-Lua, a história política e social da Guerra (...)
17A Guerra Colonial Portuguesa é também feita de sombras e silêncios (Roque 2004), onde cabem os usos de álcool e outras drogas. Na sua historiografia oficial (J. F. Antunes 1995; Garcia 2010; Teixeira 2001; Afonso e Gomes 2000), o consumo de bebidas alcoólicas geralmente não merece mais do que uma nota de rodapé, enquanto o uso de drogas ilícitas é completamente ignorado, omitido ou considerado irrelevante.15 No entanto, na história oficiosa – isto é, aquela que se faz de depoimentos e registos (auto)biográficos, necessariamente parciais e nem sempre objetivos –, o uso de substâncias psicoativas tem um outro relevo: às bebidas alcoólicas é atribuído um papel central na vida quotidiana dos militares das forças armadas portuguesas envolvidos na Guerra Colonial, enquanto é possível encontrar nos testemunhos referências – ainda que muito mais veladas e esporádicas, é certo – ao uso de canábis, na forma de erva fumável, conhecida como liamba em Angola e suruma em Moçambique, tanto por parte da população africana como por parte das tropas portuguesas.
  • 16 Na Guerra Colonial Portuguesa, de acordo com os testemunhos, a regra de não haver consumo de bebida (...)
18De acordo com os relatos, pode dizer-se que indiscutivelmente o álcool foi a substância psicoativa mais usada na Guerra Colonial Portuguesa, seguindo-se o tabaco e só depois todas as outras, a larga distância. De facto, dificilmente um ex-combatente da Guerra Colonial Portuguesa parece ser capaz de falar da sua vivência de guerra sem fazer menção às bebidas alcoólicas, com destaque para a cerveja, tal era a sua importância no dia-a-dia dos militares portugueses em África. Exceto em saídas operacionais para o “mato”, o álcool era uma presença constante, tanto em ocasiões especiais como no mais banal dos dias.16
19Segundo os ex-combatentes, no que à Guerra Colonial Portuguesa diz respeito, para muitos a ingestão maciça de bebidas alcoólicas começou cedo, logo a bordo dos navios que transportavam as tropas portuguesas até aos territórios africanos (Alexandre 2015; Ferreira 2011; Oeiras 2009; Roque 2004). Para mais, tanto no meio do oceano como, mais tarde, em boa parte dos aquartelamentos africanos, a água era um bem escasso e tendencialmente de má qualidade, o que, juntamente com o clima abrasador, favorecia o consumo de bebidas alcoólicas, normalmente ingeridas frescas ou geladas.
  • 17 A regra geral era que os quartéis portugueses em África tivessem espaços diferentes para praças e g (...)
20Como já referido, entre as diferentes bebidas alcoólicas consumidas durante o conflito, destaca-se a cerveja. De caráter transversal, pode considerar-se a bebida emblemática da Guerra Colonial Portuguesa: consumida pela ­maioria dos militares, independentemente da ocasião, da hora do dia, da função ou da patente militar. Vendidas mais caras, bebidas destiladas, como whiskygin, aguardente e outras, eram consumidas sobretudo por militares graduados, que, na sua condição de oficiais e sargentos, tinham direito a comprar e / ou eram-lhes oferecidas determinadas bebidas destiladas por mês. Embora não lhes fossem vedadas, as bebidas destiladas eram muito menos consumidas por militares não graduados, por serem vendidas mais caras do que a cerveja. O preço limitava assim o acesso a este tipo de bebidas alcoólicas e impunha uma clara barreira hierárquica.17 Ao contrário da cerveja, que era em geral de produção local, as bebidas destiladas e o vinho iam de Portugal continental.
21A importância do álcool para as tropas era reconhecida tanto por soldados como pelas chefias militares. De facto, tal como os géneros alimentares, as munições ou a correspondência, as bebidas alcoólicas faziam parte da logística militar e, por conseguinte, nunca faltavam nos quartéis portugueses, por mais remota que fosse a sua localização, sob pena de perturbar a paz social e abalar o moral.
22José Niza, que, entre 1969 e 1971, esteve presente na Guerra Colonial Portuguesa como médico de uma companhia militar em Angola, conta no seu livro de memórias, Golden Gate (2012), como a decisão governamental de limitar o acesso às bebidas alcoólicas nos quartéis, em 1971, causou uma enorme revolta entre as tropas portuguesas em África, acabando por ser revertida apenas três semanas depois. Apelidando a decisão de inoportuna e até cruel num aerograma escrito por alturas dessa decisão política, o médico revela bem como o consumo de álcool, mesmo se excessivo, era entendido pelos oficiais como algo que cumpria um importante papel social, nomeadamente uma forma de escape e alívio, pelo que limitar o seu uso causaria mais mal do que bem.
“Outro problema que cá temos é o das quantidades astronómicas de cerveja que estes tipos bebem. Uma loucura! Muitos deles, quando chegam à cantina, em vez de pedirem uma cerveja, pedem meia grade! […] O seu tranquilizante é o álcool, é com ele que se sentem mais animados, é ele que lhes tira do pensamento os problemas […]. Devo tirar-lhes a bebida? Devo tirar-lhes o biberão, a eles, que na realidade são crianças ingénuas e ignorantes a quem disseram que eram homens, a quem deram uma espingarda, a quem lançaram para uma guerra onde muitos vão ficar? Devo tirar-lhes a única coisa que para além do correio os mantém vivos?” (Niza 2012: 46-47).
  • 18 A pergunta era colocada antes de no questionário se falar de álcool e drogas, pretendendo-se, assim (...)
23Para confirmar esta relação entre o álcool e o alívio emocional durante a Guerra Colonial Portuguesa, incluiu-se uma pergunta aberta no questionário online aplicado junto de ex-combatentes: “No caso de ter sentido stressdurante a guerra em África, na altura como lidava com isso? O que fazia para se libertar da pressão?” 18 Sem surpresa, muitos ex-militares declararam que o consumo de bebidas alcoólicas era uma das principais formas de lidar com a pressão e a ansiedade (que a grande maioria reconhece ter sentido), sendo mesmo para alguns a mais importante. Assim, juntamente com o convívio, a música, a prática de desporto e, no caso de militares mais graduados, a escrita e a leitura, o consumo de bebidas alcoólicas destaca-se como um importante aliviador de tensão emocional. Eis algumas respostas à pergunta colocada no questionário online em novembro de 2015:
  • “Passei por vários períodos de grande stress, nomeadamente os dois meses de espera por substituto depois de cumprir os dois anos de comissão. Lembro-me que a minha libertação era o álcool”.
  • “Procurávamos no tempo livre abster-nos de tudo o que nos envolvia: copos, música, grandes amizades e muita confiança entre as chefias”.
  • “Fingia que não havia stress. Copos, cartas, bola e convívio com os camaradas”.
  • “Nas alturas de maior pressão bebia”.
  • “Bebia até à inconsciência”.
  • “Embebedava-me”.
  • “Bebia muitíssimo”.
  • “Bebia para dormir”.
  • “Farra e cerveja”.
  • “Álcool e tabaco com força”.
  • “Fumava e bebia whisky e cerveja”.
  • “Bebia e jogava”.
  • Whisky e poker”.
  • Whisky, bridge y putas”.
  • “Procurava abstrair-me, distraindo-me com amigos e bebendo”.
  • “Lia, bebia e tocava guitarra”.
  • “Saía para caçar e muito álcool”.
  • “Dava-lhe com uns bioxenes [calão para o whisky]”.
  • “A camaradagem era muito grande e por isso se alguém estivesse em baixo havia sempre um amigo. Além disso havia muito whisky…”
24Não é por acaso, então, que a cantina, o bar dos soldados e a messe de oficiais e sargentos eram locais de grande importância simbólica em qualquer quartel ou base militar da Guerra Colonial Portuguesa, servindo mais do que como mero ponto de aquisição de bebidas alcoólicas.
  • 19 António Lobo Antunes, que entre 1971 e 1972, esteve presente na Guerra Colonial Portuguesa como méd (...)
25Nos quartéis as bebidas alcoólicas eram vendidas mais baratas – para uso exclusivo das forças armadas portuguesas –, o que, intencionalmente ou não, favorecia e incentivava o consumo de álcool.19 Não obstante o seu baixo preço, era na aquisição de bebidas alcoólicas que grande parte dos militares gastava uma importante fatia do dinheiro que lhe era entregue mensalmente (“pré”), o que revela bem o nível de consumo de álcool na Guerra Colonial Portuguesa.
  • 20 Por exemplo, os entrevistados tendem a associar o alcoolismo sobretudo a casos em que o consumo exc (...)
26Embora retrospetivamente o nível geral de consumo de bebidas alcoólicas seja hoje consensualmente considerado elevado pelos ex-combatentes, só em casos raros e extremos estes falam de alcoolismo.20 Mesmo se visto como “exagerado”, o uso de bebidas alcoólicas tende a não ser visto pelo prisma da patologia e da ordem biomédica, sendo considerado normal e justificado, quase nunca condenado ou denegrido, na medida em que, como se viu, os militares da Guerra Colonial Portuguesa lhe atribuem um papel terapêutico: nas condições descritas, o álcool servia de equilibrador emocional e nesse sentido era tido como indispensável à boa saúde mental. É, por exemplo, a opinião de Alcino Ferreira, que esteve como furriel em Moçambique, e de José Leão (pseudónimo), que esteve em Angola como cabo enfermeiro, e que resumem muito do que atrás foi dito acerca do álcool:
“Bebia-se muito, no meu pensar, devido a diversas situações: à alta pressão passada em zonas de combate, a não se saber se haveria um amanhã, à solidão, à questão de o tempo de ócio ser muito, aos quase sempre pensamentos terríveis e inoportunos que teimavam em não nos largar, aos custos nulos e aos proveitos mais do que suficientes, tudo isso proporcionava a vadiagem e estroinice…!” (Ferreira 2011: 128)
“Normalmente havia sempre uma razão não específica para se beber, bebia-se por camaradagem, por convivência, e porque o próprio clima convidava a fazê-lo, poderia haver num ou noutro razões de ordem psicológica, de saudade da família, que nem sempre eram exteriorizadas. Bebia-se para comemorar o regresso de uma operação no mato, em que tudo tinha corrido pelo melhor, ou seja, sem mortos nem feridos, bebia-se porque se ia para uma ação no mato, e não se sabia quem, ou se se iria voltar, bebia-se porque poderia ser a última, bebia-se porque alguém fazia anos, ou porque alguém pagava umas rodadas, enfim, bebia-se porque estar vivo, por si só, já era um motivo” [entrevista eletrónica, 26 / 3 / 2015].
27Por outro lado, muitas vezes os testemunhos dão conta de que o álcool era um dos principais fatores que contribuíam para desencadear episódios de descompensação emocional (descritos como recorrentes), além de potenciar condutas irresponsáveis ou consideradas incorretas e de estar igualmente associado a muitos dos acidentes, nalguns casos com desfechos fatais (nomeadamente em episódios trágicos com armas de fogo). Essa vertente das bebidas alcoólicas tende, no entanto, a ser claramente desvalorizada ou, pelo menos, a ser secundarizada face à utilidade das mesmas num contexto como o da Guerra Colonial Portuguesa.
28Em relação às drogas ilícitas, o conhecimento acerca do seu uso durante o conflito é bastante mais escasso, impreciso e menos bem documentado, o que levou a que se recorresse essencialmente a testemunhos orais. Com base num intenso trabalho de triangulação de informação dispersa, é possível confirmar o seu uso na Guerra Colonial Portuguesa, mas não tanto o seu significado e a sua história social.
  • 21 Em contrapartida, alguns ex-combatentes que estiveram na Guiné durante a Guerra Colonial Portuguesa (...)
29Não obstante todas as lacunas de informação, parece indiscutível que a canábis foi a substância psicoativa ilícita mais consumida neste conflito militar, nomeadamente em Angola e em Moçambique, países onde, ao contrário da Guiné, o consumo da planta era então uma prática antiga instituída junto de parte da população (Valentim 2012; Silva 2003; Fabian 2000; Toit 1976).21
30Infelizmente, a produção antropológica e o saber etnográfico acumulado acerca dos povos de Angola, Guiné e Moçambique nunca deram muita atenção ao uso de substâncias psicoativas lícitas e, muito menos, ilícitas. Sobre a canábis e outras drogas que não o álcool na África portuguesa, é possível encontrar apenas referências dispersas e geralmente laterais (Carvalho 1898; Welwitsch 1862), as mais antigas das quais remontam ao período dos missionários, como o frade João dos Santos (1999 [1609]), no século XVII, e dos exploradores de África, como Paiva Couceiro (1892), Capelo e Ivens (2010 [1881]) e outros (Rosa e Verde 2013; Heintze 2010 [1999]), no século XIX.
31Uma coisa é certa: as tropas portuguesas bebiam o álcool que era disponibilizado pela intendência militar, mas fumavam as drogas que encontravam por si próprias, tendo desenvolvido com a liamba e a suruma uma relação que nunca estabeleceram com as bebidas alcoólicas tradicionais africanas, de fabrico artesanal. De uma forma geral, foi algo com que se depararam, não um bem que trouxessem consigo, que já conhecessem ou que procurassem ativamente. Aliás, tendencialmente os militares envolvidos na Guerra Colonial Portuguesa – como a maior parte dos jovens portugueses seus contemporâneos, de resto – não tinham um conhecimento prévio acerca das drogas em geral, e dos efeitos psicoativos da canábis em particular, conhecimento que era em geral muito escasso e difuso. Neste sentido, o consumo de canábis foi uma das novas e não antecipadas experiências por que passaram alguns ex-combatentes em terras africanas.
  • 22 Entre estas personagens-chave destacavam-se os soldados de incorporação local que serviam no exérci (...)
  • 23 Tudo indica que, pelo contrário, em pontos nevrálgicos e de confluência dos militares – como a cida (...)
32Tudo indica que o conhecimento acerca da canábis e, consequentemente, o seu uso tenham aumentado com o desenrolar da própria guerra (Ribeiro 1999), dependendo da região, do tipo de tropa e até da unidade militar, beneficiando da crescente “africanização” do contingente militar. Nesse sentido, o consumo de canábis pode ser visto como um processo de aprendizagem que dependia de personagens-chave com ligações às populações locais (que depois introduziriam o uso da planta no seu círculo de relações).22 Não é por acaso que os militares portugueses colocados em quartéis situados em zonas muito remotas, sem aldeamentos nas imediações, tendem a não ter tido contacto com esta substância.23 De acordo com os testemunhos, a canábis que circulava por entre os militares portugueses provinha das populações africanas, sendo comprada, trocada, recolhida ou até roubada nos aldeamentos próximos dos quartéis portugueses (Janeiro 2012), ou então capturada ao inimigo (Marta 2000).
33Rui Martins (pseudónimo), que esteve em Moçambique como alferes entre 1971 e 1974, refere os esquemas de circulação da canábis por entre as tropas portuguesas e como então se estava longe do conceito de “tráfico de droga”:
“A mim davam-me. Eram os africanos que tinham esse conhecimento. Por vezes achavam aquilo uma coisa natural, era como dar tremoços para a cerveja, outras vezes vendiam por valores irrisórios. Os preços eram muito baratos. Na maior parte das vezes davam. […] E portanto as pessoas fumavam, era barato, muitas vezes não custava nada, havia pessoas que sabiam ir ao campo buscar a marijuana como cá são capazes de ir buscar papoilas” [entrevista presencial, 31 / 1 / 2015].
34Ao contrário do que se passa com as bebidas alcoólicas, a grande maioria dos testemunhos publicados não faz a mínima menção ao uso de canábis. Alguns registos biográficos fazem menção ao uso de liamba e suruma durante a guerra mas não lhe dedicam atenção (Vardasca 2012; A. L. Antunes 2005), ou então referem-nas de forma lateral (Janeiro 2012; Marta 2000) ou condenatória, criando distância (Ferreira 2011; Aranha 2005; Martins 2003). Também a recolha de informação no ciberespaço permitiu encontrar referências ao uso de canábis por parte das tropas portuguesas, embora estas sejam raras e muitas vezes indiretas: tendencialmente o tema não é abordado diretamente mas através de metáforas, muitas vezes num tom irónico e com recurso a duplos sentidos.
35No entanto, quando se pergunta por esta planta a ex-combatentes, uma boa parte tem algo a dizer sobre o assunto, seja porque consumiu ou assistiu ao seu consumo, seja porque tem notícia por terceiros do seu uso na Guerra Colonial Portuguesa. Não é, de todo, um assunto totalmente desconhecido, ainda que geralmente não seja falado. De facto, a maior parte dos entrevistados no âmbito da presente investigação teve contacto direto ou ouviu falar do uso da planta durante o conflito.
36O inquérito online incluiu duas perguntas abertas com o propósito de confirmar o uso de canábis na Guerra Colonial Portuguesa: uma questionava o conhecimento do fenómeno (“Como descreveria o consumo de marijuana / liamba / suruma durante a guerra em África por parte das tropas portuguesas?”), outra o contacto direto com a planta (“Consumiu marijuana / liamba / suruma durante a guerra em África?”).
37A análise das respostas permite chegar a duas conclusões: a ausência de consumo de canábis por parte das tropas portuguesas na Guiné e um consumo relevante em Angola e Moçambique. De entre os 210 respondentes, todos aqueles que estiveram na Guiné afirmam não ter consumido a planta e desconhecer por completo o seu uso no território durante a guerra. O mesmo não se passa com os respondentes que estiveram em Angola e Moçambique: 15% dos militares que fizeram a guerra naqueles territórios afirmam ter consumido canábis, enquanto outros 25% afirmam ter assistido ao consumo ou tido conhecimento direto disso. Feitas as contas, dos respondentes que estiveram em Angola e Moçambique durante a Guerra Colonial Portuguesa, perto de metade (40%) declaram ter tido um contacto direto com a planta.
38Mas se é facilmente comprovável o consumo de canábis (e até, de alguma forma, possível estimar a dimensão do fenómeno) entre as tropas portuguesas que estiveram na Guerra Colonial, mais difícil é perceber o seu significado e fazer a sua história social. Em geral, o tom com que os entrevistados falam acerca do uso pessoal de canábis revela desconforto e vontade de evitar ou, pelo menos, desvalorizar a questão, tornando claro que este é um assunto incómodo, acerca do qual se dizem sobretudo coisas genéricas e não pessoais, o que está certamente relacionado com o seu caráter ilícito. Tal dificulta a investigação, mas ao mesmo tempo revela que as drogas não podem ser postas à parte do contexto social e que o discurso sobre elas é condicionado histórica e socialmente. De tão presente e recorrente, este silêncio adquiriu uma importância central, levantando questões.
39A tónica dos discursos é colocada no desconhecimento, como se de alguma forma atenuasse ou desculpasse uma prática que é hoje vista como ilícita: todos os ex-combatentes entrevistados, tanto presencialmente como por via eletrónica, declaram que, à data, não estavam informados acerca das drogas e que não havia uma clara perceção de que o uso de canábis era algo proibido. Como já referido no início, a noção de “droga” enquanto problema social (­Fernandes 2009) emerge no mundo ocidental ao mesmo tempo que decorre a Guerra Colonial Portuguesa. No entanto, no Portugal dos anos 60 e meados de 70 do século XX, o conhecimento sobre as drogas e o contacto com as substâncias proibidas eram invulgares e estavam limitados principalmente a uma pequena fatia da população, constituída essencialmente por jovens urbanos das grandes cidades (Costa 2007; Dias 2007; Ribeiro 1995), pelo que o conceito era algo mais abstrato do que concreto, não algo palpável e bem definido.
  • 24 Assistiu-se à mesma resistência em abordar certos temas e ao traçar da “fronteira que separa o que (...)
40Do pouco que os seus consumidores estão dispostos a falar,24 pode dizer-se que a canábis era usada na guerra de África como uma forma de ajudar a relaxar, “espantar o medo”, aliviar a ansiedade e escapar à angústia (Vardasca 2010) – que naquele contexto, de acordo com os testemunhos, assumiam uma dimensão colossal. Normalmente em associação com as bebidas alcoólicas, o consumo de canábis tanto podia ser feito em pequenos grupos como de forma isolada. Tendia a ser discreto mas não se tratava de algo propriamente secreto e / ou algo que, por si só, desse origem a castigos disciplinares.
41Luís Leal (pseudónimo), que esteve como soldado condutor em ­Moçambique entre 1971 e 1973, destaca-se como informante privilegiado, por falar abertamente acerca do uso pessoal de canábis na guerra, que define como recorrente enquanto esteve em zona operacional:
“Eh pá, a gente fumava aquilo. Pá, a gente ia para uma operação e parecia que íamos para um baile. Uma despreocupação total. Quer dizer, aquele medo, coiso e tal, não. Claro que não íamos para o mato a rir, não é, nem a dançar. Mas íamos tão despreocupados que aquilo parecia que nem estávamos em guerra. E a gente ia, fazíamos as operações. Eu fumei bastante. Bastante daquilo. Porque era um escape que eu tinha. Eu não podia viver sem aquilo lá. […] A gente queria é ir para o mato tranquilos, sem preocupações. E aquilo: ‘eh pá, tu vais para o mato e parece que não vais, esse medo todo sai, sai fora de ti, pá’, não sei quê” [entrevista presencial, 13 / 2 / 2015].
42Também Rui Martins, atrás já apresentado, descreve o consumo de canábis como generalizado em Moçambique e, mais do que isso, de alguma forma incentivado pelos pares e ignorado pelas chefias militares:
“Havia uma questão psicológica, como toda a gente fumava marijuana, havia a ideia que quem não fumasse marijuana era maricas, ou qualquer coisa. […] As chefias achavam que cada um fizesse o que quisesse. Não havia qualquer proibição, toda a gente sabia que toda a gente fumava a dita liamba – ou como chamava-se lá, suruma, a expressão que era usada em Moçambique. De tal maneira que se tornou uma adjetivação: ‘eh, pá, isso é só suruma’, quer dizer que um gajo estava a ficar parvo, pá. Mas ele estava a ficar parvo não era por isso, estava a ficar parvo porque estava farto da guerra [risos], não era por causa de fumar suruma” [entrevista presencial, 31 / 1 / 2015].
43Claro que, por cada informante que considera o consumo de liamba e suruma uma prática habitual na Guerra Colonial Portuguesa, nomeadamente em Angola e Moçambique, se encontram dois ou três que afirmam o contrário.
44Seja qual for a verdadeira dimensão do uso de canábis por parte das tropas portuguesas envolvidas no conflito, tudo indica que a grande maioria dos militares cessou os consumos aquando do regresso a casa, tal como se passou, aliás, no caso dos veteranos da Guerra do Vietname. Se bem que num processo mais complicado e demorado, segundo os próprios, também o consumo de bebidas alcoólicas foi igualmente sendo reduzido na generalidade dos casos, à medida que se foi procedendo ao reajuste face ao novo quotidiano e à passagem para a vida civil. Tal reforça a ideia de que o uso de substâncias psicoativas é algo que é intrinsecamente condicionado pelo contexto social e pelo conjunto de motivações e expetativas dos seus utilizadores.
45No seu livro de memórias da guerra, José Manuel Martins, que esteve como primeiro-cabo no norte de Angola, entre 1972 e 1973, resume muito do que foi dito atrás acerca da canábis:
“Na década de setenta do século passado, havia consumo de droga nos quartéis! Em Zau-Évua, alguns militares consumiam droga, fumavam, pelo menos, liamba. No âmbito fechado, onde o moral não era alto, o consumo constituía mais um meio de ‘evasão’, de resposta ao isolamento e à desmotivação. […] Não existiam intuitos de ‘tráfico’: quem tinha, tinha, e, por vezes, ‘facilitava’ aos interessados, que, mais tarde, faziam o mesmo. Não havia, embora possa admitir estar errado, consciência dos malefícios do consumo de droga; ao contrário, os consumidores achavam que o uso da liamba favorecia os relacionamentos, descomplexava e fazia esquecer as dificuldades do momento! Não se falava, é certo, de cocaína ou heroína nem dos horrores que o respetivo consumo implicava. Estávamos apenas no início da década de setenta, numa sociedade encerrada em si mesma, sem abertura ao exterior, onde apenas as ondas de rádio nos levavam para bem longe, embora sob todas as cautelas possíveis. Nas circunstâncias, o consumo de droga visava mais a ‘descontração’, o alívio da tensão em que se vivia. Não mais do que isso” (Martins 2003: 152).