A solidão assistida do soldado
Como Marta demonstra no princípio do livro, o conceito de madrinha de guerra não nasceu nos anos de 1960. Remonta à Primeira Guerra Mundial, quando os Estados-Maiores dos exércitos em confronto compreenderam a importância psicológica do apoio feminino junto das tropas sujeitas ao horror das trincheiras. A propósito, cita amplamente Cartas às Madrinhas de Guerra, de Afonso do Paço, militar e arqueólogo que integrara o Corpo Expedicionário Português em França.
Em 1961, quando a guerra irrompe em Angola (estendendo-se posteriormente à Guiné-Bissau e a Moçambique), os meios eram outros e o regime não tardou a incentivar esse tipo de correspondência, tratando de controlar a solidão e o desalento do soldado atirado para uma realidade que lhe era totalmente estranha.
Em cena entrou, pois, o Movimento Nacional Feminino, dirigido pela primeira figura feminina do Estado Novo, Cecília Supico Pinto (1921-2011). Casada com um dos homens fortes de Salazar (Clotário Supico Pinto), foi ganhando ela própria ascendente junto do ditador. Quando as primeiras tropas embarcaram para Angola, Cecília não teve, pois, dificuldade em implantar a sua estratégia de ação psicológica.
"O curioso - diz a autora do livro - é que aquilo que começa por ser uma iniciativa política, levada a cabo pelo regime, não tarda a ultrapassá-lo. Em breve revistas de grande circulação, como A Plateia ou a Crónica Feminina, começam a publicar listas com os nomes dos soldados que procuram madrinha de guerra. Outros recorrem à de ajuda de terceiros nessa busca, que tanto podem ser familiares como os próprios carteiros, pedindo-lhes que entreguem aquela carta à primeira rapariga, ou à mais bonita, que encontrassem na sua zona de trabalho."
Hoje, em tempo de redes sociais, sorrimos com o quase bucolismo de tal ideia, mas, como salienta Marta Martins Silva, "dificilmente imaginamos o que seria a expectativa pelos resultados dessas diligências. A chegada do correio deveria ser um momento muito emocionante para todos eles".
Logo no princípio da guerra, a vulgarização dos aerogramas, popularmente conhecidos por "bate-estradas", facilitou muito as comunicações entre a metrópole e as tropas em África. Como se pode ler neste livro, "eram, além de tudo, muito fáceis de utilizar pelas famílias, que não precisavam de escrever o endereço do militar a quem as missivas se destinavam - bastava que indicassem o nome e o seu número do Serviço Postal Militar, responsável por fazer chegar as cartas ao destino. Isto era possível porque cada destacamento militar tinha atribuído um número com quatro dígitos que identificava a exata localização dos soldados". Quando passaram a ser transportados gratuitamente pela TAP, com uma rapidez que o correio normal, com franquia, não conhecia, os números dispararam: "O número de aerogramas em circulação aumentou de forma exponencial: a média mensal até setembro de 1962 foi de 423 750 aerogramas, número que aumentou para 663 750 de setembro a abril de 1963, o que significou mais de 200 mil aerogramas por mês e mais de 2 400 000 enviados por ano."
Era o veículo possível para galgar a distância entre quem ficava num país pobre e quem partira para destino incerto: "Naquela altura, mobilizados rapidamente e em força, os militares interromperam a vida e deixaram pendentes os mais variados problemas pessoais: empregos, noivados, casamentos, pais em situações precárias. Naquela época, muitos deles eram o ganha-pão da maioria dos agregados e a sua ausência fazia mossa na comida que entrava em casa e não apenas nas saudades."