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quinta-feira, 13 de junho de 2019

A LOGÍSTICA DE PORTUGAL NA GUERRA SUBVERSIVA DE ÁFRICA (1961 A 1974) IIII



3.3. Necessidades em campanha e apoio externo



O valor médio da verba necessária por dia para manter individualmente os militares portugueses nos TO era: 115$00 para o TO de Angola; 105$00 para o TO da Guiné; 125$00 para o TO de Moçambique[138]. Estas eram as necessidades que a estrutura logística de Portugal tinha que garantir a cada militar para que a sustentabilidade das operações militares estivesse assegurada[139]. Na realidade, a Guerra em África exigiu de Portugal um apreciável o esforço financeiro na sustentação da luta[140], pelo que, no seguimento dos planos de reformas, foi implementado um plano intercalar, aprovado pela Lei n.º 2123, de 14 de dezembro de 1964 (1965-1967), no qual a indústria se afirmou como o setor prioritário, apesar do esforço económico estar direcionado para a Guerra em África, e um III e último PF, aprovado pela Lei n.º 2133, de 20 de dezembro de 1967 (1968-1973) [141]. Portugal aderiu ainda ao Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, General Agreement on Tariffs and Trade (GATT)[142], em 1962, com a extensão aos territórios ultramarinos. Neste contexto, começou-se a industrializar e a investir economicamente nas províncias ultramarinas, onde as operações militares desencadearam um surto de desenvolvimento em todas as parcelas ultramarinas, com destaque para Angola e Moçambique. Passou a desenvolver-se e a aproveitar-se a riqueza dos territórios ultramarinos[143], como forma de contribuir para a sustentação das ações militares e psicossociais, foi autorizado um maior investimento estrangeiro, adaptaram-se estruturas, desenvolveram-se métodos e investigação, reformularam-se leis que as necessidades da guerra e a evolução dos tempos impunham e, finalmente, o aumento das migrações internas e o contacto com novas gentes e realidades, provocaram uma evolução na dinâmica social e cultural da sociedade portuguesa. O resultado foi o aumento da população dos territórios ultramarinos, de 12 milhões de habitantes, em 1953, para quase 17 milhões, em 1971[144]. O volume do comércio externo triplicou no mesmo período, de 14 milhões de contos para 45 milhões[145], e o Produto Interno Bruto (PIB) passou de 39 para 130 milhões de contos[146]. As reservas de ouro e divisas somavam cerca de 50 milhões de contos[147] no final de 1973[148].
Apesar destes esforços, o governo português não dispunha dos “meios políticos, económicos e militares para conduzir a sua política isoladamente”, nem conseguiria promover o desenvolvimento económico do país sem o “indispensável apoio externo”[149]. Na realidade, as FA em geral, debatiam-se com uma sistemática carência de viaturas, de rádios capazes e de uma necessária renovação do armamento, face ao material mais variado e moderno que os movimentos independentistas obtinham[150]. O fornecimento de aviões e helicópteros, a maioria dos navios, artilharia, mísseis e equipamentos diversos sofisticados, nomeadamente de transmissões dependia do estrangeiro[151]. Neste campo, a cooperação com a França, que se manteve até meados dos anos de 1960[152], foi bastante benéfica para Portugal e permitiu colmatar algumas necessidades em aparelhos aeronáuticos, que passaram a ser recusados pelos EUA[153]. Desta cooperação, foi ainda possível implementar o plano de renovação naval, que previa a construção de um enorme conjunto de navios de guerra, em França e em Lisboa, iniciada em 1965[154]. Com a RFA, o governo português conseguiu a diminuição do défice da balança comercial, a principal preocupação portuguesa, cuja resolução passava pela produção de armamento em Portugal e a sua exportação para a RFA[155]. As vantagens para Portugal que daí advieram foram muito importantes para a guerra subversiva em África, pois incluíram a concessão de créditos em condições favoráveis, aumento das compras alemãs em Portugal, em particular de munições e armas ligeiras de fabrico português e “o fornecimento, muitas vezes a preços simbólicos, de aviões apropriados à guerra em África, de equipamentos de telecomunicações, de material de guerra diverso, de veículos militares e outros”[156].
O governo português estabeleceu ainda acordos militares de assistência mútua e económicos com alguns países da África Austral, principalmente com a antiga Rodésia e com a RAS[157], resultado da ação política levada a cabo na execução da estratégia contra subversiva materializada por Portugal durante o conflito em Moçambique[158]. Na realidade, as dificuldades logísticas no transporte de abastecimentos de Lourenço Marques para o Norte do território[159], levou a que se preparasse uma operação “na época das chuvas de 1969” com uma coluna “especial”[160]. A “especialidade” resultava do percurso que iria percorrer: “saindo de LMarques incluía a entrada na República da África do Sul, pela Vila Ressano Garcia, atravessar em direção à Rodésia e, depois de ultrapassar Tete, seguiu pelo Malawi, entrando novamente em Moçambique, pela região de Nova Freixo rumo a Nampula”. O sucesso desta “operação”, ao fim de quase um mês de marcha, exigiu “cuidados muito especiais”, nomeadamente contactos com as autoridades dos Estados a atravessar, “alteração das matrículas das viaturas, condutores trajando civilmente, ausência de rastos, etc.”[161]. Com Salisbúria[162], Portugal conseguiu assegurar a ligação terrestre pacífica entre Angola e Moçambique[163] e obteve, na RAS[164], a partir de 1966, o apoio tecnológico e material que lhe começava a faltar da França e da RFA[165]. Na realidade, a RAS atuava com forças aeromóveis em Tete e mantinha forças na faixa de Caprivi e no Transvaal[166], que lhe permitiam apoiar operações militares tanto em Angola como em Moçambique[167].
Com um embargo limitado, foi-se conseguindo um equilíbrio favorável entre as capacidades que se conseguiam desenvolver e o material que se tinha que importar[168]. Esta vantagem só foi posta em causa na Guiné, em 1973, com o aparecimento dos mísseis antiaéreos SAM/7 e o reforço do poder de fogo em artilharia, por parte do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC)[169]. Com uma gestão racionalizada dos recursos humanos, materiais e financeiros, Portugal conseguiu garantir as condições essenciais à sua permanência em África e à concretização de um desenvolvimento evidente nas províncias ultramarinas durante os catorze anos de conflito armado[170]. Apesar de todas as manobras efetuadas, a ONU e outros forainternacionais nunca impuseram sanções que limitassem seriamente a capacidade logística de Portugal prosseguir o esforço de guerra e a pacificação dos territórios ultramarinos[171].



quarta-feira, 12 de junho de 2019

A LOGÍSTICA DE PORTUGAL NA GUERRA SUBVERSIVA DE ÁFRICA (1961 A 1974) III

3.2. Projeção da logística para os teatros de operações

“Um apoio logístico eficaz é fundamental para o sucesso de qualquer campanha” e “deve ser parte integrante de todo o planeamento operacional uma vez que pode restringir o objetivo das operações ou possibilitar a liberdade de ação e apoiar o moral”[110]. Embora em conflitos de baixa intensidade existam “poucos exemplos em que a logística tenha desempenhado um papel importante”[111], no caso da Guerra em África o fator distância e o cariz subversivo da guerra tornaram este apoio fundamental para o moral das tropas e para a consecução dos objetivos dos programas psicossociais[112].
O início da guerra em Angola implicou o recurso de elevados efetivos militares da Metrópole, contudo, o fretamento de meios aéreos de transporte, possibilitou a rápida projeção de um quantitativo demasiado elevado para as capacidades da estrutura logística do TO. As características do território agravaram ainda mais a situação, nomeadamente: (1) a sua enorme extensão, (2) a má qualidade das vias de comunicação e (3) a quase ausência de infraestruturas. Na realidade, embora as FA previssem uma guerra subversiva em África[113], o Ministério do Exército não tinha preparado doutrina relativa ao apoio logístico para ações de contrassubversão[114], além de que, parte do armamento e equipamento existente estava obsoleto[115], e o mais moderno, ao abrigo da aliança OTAN, estava condicionado à Europa[116].
Perante a urgente necessidade de material adequado às exigências operacionais, recorreu-se à improvisação e adaptação de meios[117], aproveitou-se armamento disponível e utilizaram-se espingardas automáticas FN cedidas pela RFA e RAS[118]. Para remediar esta situação, foi necessário adquirir diverso material de guerra, e reduzir a dependência do estrangeiro. Neste sentido, a FMBP adquiriu diversa maquinaria destinada à produção da espingarda automática G3, que começaria a ser totalmente produzida ainda em finais de 1962. Contudo, a reação mais imediata foi a expansão para África das atividades da Manutenção Militar (MM)[119], do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos (LMPQF) e das Oficinas Gerais de Fardamento (OGF)[120], com a criação de várias sucursais, delegações, messes e infraestruturas dispersas por extensas áreas geográficas[121]. Esta implantação em África visava principalmente prestar um apoio logístico mais eficiente às forças militares, através da descentralização da produção, exploração dos recursos locais e construção de depósitos que assegurassem um reabastecimento mais rápido. O desenvolvimento das estruturas criadas incluía, em 1973, estabelecimentos da MM, do LMPQF e das OGF nos três TO, nomeadamente em Angola, em Luanda, Luso e Nova Lisboa, na Guiné, em Bissau e em Moçambique, na Beira, Lourenço Marques, Nampula e Porto Amélia. Apesar de não terem sido criadas delegações das Oficinas Gerais de Material de Engenharia (OGME) em África, este estabelecimento contribuiu com pessoal técnico no apoio em manutenção e reparação de viaturas e equipamentos nos três TO[122].
Para responder às necessidades operacionais criou-se uma base logística em Luanda, devido à abundância de recursos locais, aos desenvolvidos portos, aeroporto e infraestruturas rodoviárias, e dividiu-se o território em duas áreas logísticas: a primeira, englobava a Zona de Intervenção Norte (ZIN), onde a maioria do apoio era necessário, e a segunda, cobria o resto do território nas Zona de Intervenção Centro (ZIC), Zona de Intervenção Sul (ZIS), e Zona de Intervenção Leste (ZIL), menos densamente povoadas e com 50% dos efetivos a viver dos recursos locais[123]. Em 1962, a estrutura logística em Angola aplicou um conceito de apoio logístico que seria a referência para os diversos serviços, e estabelecia os seguintes princípios: (1) os órgãos logísticos a montar seriam da Região Militar de Angola (RMA); (2) os órgãos seriam inamovíveis, dada a excessiva mobilidade das forças a apoiar e prestariam maioritariamente apoio logístico de área; (3) os limites logísticos deveriam coincidir com os limites táticos; (4) as unidades com maior atividade operacional seriam aliviadas das preocupações de reabastecimento, na medida do possível[124].
Em 1961, o Serviço de Intendência em Luanda era praticamente inexistente, com, apenas, o Depósito de Intendência de Angola (DIA), e com a aquisição de víveres a ser feita por exploração dos recursos locais. Após 1961, a sucursal da MM em Luanda tornou-se o depósito-base de víveres, e as tropas de intendência que chegaram da Metrópole “montaram e acionaram uma rede de órgãos avançados adaptada ao dispositivo tático”, que passou a fornecer com regularidade os abastecimentos necessários às tropas[125]. Os pelotões de intendência foram assim distribuídos no interior do território, preferencialmente junto das sedes dos setores, com maior concentração na ZIN, onde a atividade operacional era mais ativa. Com a instalação das OGF na RMA, as FA portuguesas passaram a ser autossuficientes em calçado, fardamento[126], equipamento individual do combatente e outro equipamento diverso, assim como em rações de combate e todo o tipo de alimentos, combustíveis e lubrificantes. Enquanto este sistema não foi implementado, em especial durante a reocupação do Norte de Angola, recorreu-se ao reabastecimento aéreo e a fornecedores locais[127].
A escassez de sobressalentes, munições e material diverso levou o Serviço de Material a enviar, em 23 de abril de 1961, o primeiro transporte com diverso material de guerra, no Navio-motor (N/M) “Benguela”, que, só após chegar a Luanda, possibilitou a partida para o Norte do primeiro contingente[128]. O apoio inicial prestado às Unidades Escalão Batalhão (UEB) por destacamentos móveis evoluiu para um apoio de área, a cargo dos Destacamentos de Manutenção de Material, junto dos quais estavam os Depósitos Avançados de Munições, mais tarde substituídos por Pelotões de Apoio Direto, com capacidade de apoio até três UEB. Estes pelotões estavam dispersos pelas zonas de conflito[129] e com “grande proximidade das subunidades do Serviço orgânicas das unidades apoiadas” e eram coordenados por Companhias de Manutenção de Material de Apoio Direto, inseridas num Batalhão de Manutenção de Material. Esta estrutura, criada em 14 de março de 1963, estava centralizada no Agrupamento do Serviço de Material de Angola (ASMA), em Luanda, sobre o qual dependia também um Batalhão de Depósito de Material. Na Guiné, a estrutura estava completamente centralizada num só órgão, o Batalhão de Serviço de Material, localizado em Bissau, contudo, em Moçambique, a estrutura adotada foi muito mais descentralizada, ficando os órgãos de apoio geral dispersos por três localidades, Lourenço Marques, Beira e Nampula, onde operavam diversas subunidades de apoio direto dispersas pelas zonas em conflito[130].
Reconhecendo que “um Serviço de Saúde eficiente é vital para qualquer exército que entre em ação”[131], o EP estabeleceu a “Regra das Seis Horas”[132], cuja maior dificuldade era levar um ferido para o local de tratamento dentro desse período. O tratamento inicial era quase sempre aplicado por pessoal não médico e, mediante o local do incidente, os feridos eram evacuados para as “enfermarias de unidade”, nos comandos das companhias, ou para as “enfermarias de sector”. Em ambos os casos, os hospitais civis serviam de alternativa e, quando “necessário e possível”, os feridos graves eram evacuados por helicópteros diretamente para o Hospital Militar de Luanda (HML), último local de evacuação em Angola[133]. O regime de evacuação estabelecido em Angola definia o máximo de: dez dias de permanência nas “enfermarias de unidade”, vinte dias nas “enfermarias de sector”, trinta dias nos hospitais civis e sessenta dias no HML. Estas diretrizes aplicaram-se em todos os TO, contudo, devido às reduzidas dimensões do TO da Guiné, as enfermarias de sector não existiam, sendo o Hospital Militar de Bissau que desempenhava essas funções. Havia, no entanto, uma rede de enfermarias de unidade e postos de socorros no interior do território. Em Moçambique, havia dois hospitais militares secundários, na Beira e em Nampula, e o Hospital Militar de Lourenço Marques, com capacidades de hospital central. À semelhança de Angola, existia uma rede de enfermarias de sector e de unidade e postos de socorros[134]. Em casos especiais[135], havia acordos com a África do Sul para tratamentos no Hospital Militar de Pretória[136].
Em 1961, a escassez de meios militares de transporte terrestres suficientes, levou ao fretamento de viaturas civis que foram empregues nas primeiras colunas que se deslocaram para a zona afetada. Recorreu-se, ainda, à linha do caminho-de-ferro Luanda-Malange, contudo, foi a necessidade de controlar as requisições relacionadas com o reabastecimento das unidades, e todos os movimentos por via aérea e marítima a partir da base logística de Luanda, que levou à criação de uma Secção de Transportes, em abril de 1962, dentro da quarta repartição do quartel-general[137].

terça-feira, 11 de junho de 2019

A LOGÍSTICA DE PORTUGAL NA GUERRA SUBVERSIVA DE ÁFRICA (1961 A 1974) II


2.2. Evolução da logística portuguesa


A logística é a “ciência do planeamento e da execução de movimentos”[56] e sustentação de forças[57], “relacionada com a conceção e desenvolvimento, obtenção, receção, armazenagem, movimentos, distribuição, manutenção, evacuação e alienação de materiais, equipamentos e abastecimentos e com todas as atividades de apoio sanitário”[58]. Contudo, a definição do conceito de logística como ramo autónomo da ciência militar só assumiu expressão assinalável nas Forças Armadas Portuguesas após 1955, nas manobras anuais, em Santa Margarida[59]. O facto de Portugal não ter participado na Segunda Guerra Mundial adiou a necessária renovação nos processos de apoio logístico[60]. Com a adesão de Portugal à OTAN, a estrutura militar portuguesa e as doutrinas por que se regiam sofreram grandes alterações e foram assumidos compromissos internacionais que tiveram reflexo na logística. Em 1950 foi criado o Ministério da Defesa Nacional (MDN), com jurisdição sobre o Ministério do Exército[61] e o Ministério da Marinha e, em 1953, a mudança ao nível do pensamento militar, levou à alteração das unidades operacionais do Exército Português (EP) que passaram a ser de dois tipos: as “tipo português”[62] e as “tipo americano”, com organização semelhante ao Exército dos EUA, equipadas com material moderno e treinadas para o combate contra as forças soviéticas na Europa[63]. Neste sentido, Portugal aperfeiçoou e modernizou o seu conceito de apoio logístico, através do envio de oficiais para frequentar cursos sobre logística nos EUA. A participação nos exercícios de postos de comando na RFA, mentalizou os oficiais portugueses presentes para a importância da logística.
Com um quadro de pessoal instruído ao nível logístico, as doutrinas dos EUA e da OTAN foram reformuladas e adaptadas pelas FA portuguesas ao nível dos conceitos, princípios orientadores da ação da logística[64] e forma de atuação[65]. Estas reorganizações, além de modernizarem as FA portuguesas dentro dos limites dos recursos nacionais, constituíram a “base para a futura expansão” e sustentação, necessária para conduzir as operações militares em África, de 1961 a 1974[66]. Na realidade, em 15 de março de 1961, a estrutura logística do EP, dispunha já de entidades de direção e órgãos de execução em pleno funcionamento que permitiram reagir à situação de emergência que surgiu em Angola[67].

A organização logística estava inserida na quarta repartição (logística), com dependência direta do Quartel-Mestre General. Este dependia hierarquicamente do Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), que assistia o Ministro do Exército ou o Subsecretário de Estado (Ministério do Exército)[68].

Na estrutura logística do EP inseriam-se as indústrias militares[69]. O apoio económico-financeiro dos EUA, decorrente do Plano Marshall, que Portugal recebeu até meados da década de 1950, foi essencial para a criação e modernização da indústria de defesa que iria contribuir para a capacidade de sustentação das operações militares em África[70]. A procura de uma maior autossuficiência na área do armamento e munições levou a um investimento na indústria militar. Embora a ajuda norte-americana tenha ficado aquém do esperado, a Fábrica Militar de Braço de Prata (FMBP) recebeu, em 1952, cerca de 45% do investimento total, conforme planeado na diretiva “O Esforço Militar de Portugal” e a Fábrica Nacional de Munições de Armas Ligeiras (FNMAL) recebeu 11% do investimento total proveniente do auxílio financeiro do Plano Marshall. Portugal recebeu ainda apoio estrangeiro na formação técnica do pessoal das indústrias militares, particularmente de Espanha. No total, o financiamento ao programa industrial militar português, no respeitante à produção de munições, foi na ordem de 7.665.000 dólares, dos quais 26,5% provinham do Plano Marshall[71]. Apesar da indústria militar não ser de elevado nível tecnológico, iria permitir a satisfação das necessidades básicas das FA, em munições e armas ligeiras[72].

3. O início da guerra em Angola, “rapidamente e em força”
Após os incidentes na Baixa de Cassange, em 11 de Janeiro de 1961, foram enviadas para Angola quatro Companhias de Caçadores Especiais e uma Companhia de Polícia Militar, em reforço à guarnição normal, perfazendo um total de cerca de 6.500 militares, dos quais apenas 1.500 eram europeus. Este era o efetivo militar presente em Angola ao eclodir da guerra, que, por ser em de tempo de paz, do ponto de vista logístico, não contemplava uma estrutura devidamente preparada[73]. Com o início da insurreição em Angola, realizada pela União dos Povos de Angola (UPA)[74], em 15 de março de 1961, confirmou-se a ausência de um planeamento logístico no TO, capaz de apoiar a manobra em terreno acidentado. A área afetada era cerca de 100 mil quilómetros quadrados, várias vezes superior à Metrópole, desde as margens do Rio Zaire até ao sul dos Dembos. Cerca de 1.000 colonos brancos e 6.000 negros bailundos, homens, mulheres e crianças são mortos nas seguintes áreas: junto à fronteira norte, em Bueda, Luvaca, Cuimba, Mandimba e Canda, e no interior, em Bessa, Monteiro, Quibala, Cambamba, Quitexe, Zalala e Nova Caipemba[75]. “Em nenhuma das localidades com guarnições militares houve quaisquer assaltos ou massacres”[76]. O ataque foi planeado para a época das chuvas e, na realidade, em março, as estradas estavam alagadas e nem uma era alcatroada. A via principal que ligava Carmona a Luanda, por onde era escoado o café, estava intransitável e as FA, em número reduzido e mal distribuídas no terreno, não tinham os meios necessários para proteger a população[77].

A primeira operação logística, após os ataques de 15 de março de 1961, foi uma operação de evacuação da população do Norte de Angola para Luanda, caracterizada pela carência de meios aeronáuticos da Força Aérea Portuguesa (FAP). Assim, foram requisitados aviões da Divisão de Transportes Aéreos (DTA), uma companhia provincial de transportes, e foram também autorizados a participar nas missões pilotos particulares que formaram a Esquadrilha de Voluntários do Ar (EVA). Embora a EVA estivesse equipada apenas com monomotores, formou uma verdadeira ponte aérea[78].
Após controlada a tentativa de golpe de Estado protagonizada por Botelho Moniz, Salazar assume a pasta da defesa nacional, em 13 de abril de 1961, e remodela o governo em 4 de maio, sob o argumento: “Angola, andar rapidamente e em força”[79]. Logo em 19 de abril, por via aérea e, em 21 de abril, por via marítima, seguem os primeiros contingentes para o TO de Angola. Estes últimos embarcaram no paquete Niassa, no cais da Rocha do Conde de Óbidos, em Lisboa[80], e chegaram a Luanda no dia 1 de maio, uma segunda-feira[81]. Em 13 de maio inicia-se a reconquista do norte de Angola[82] e, em menos de quatro meses, as FA reocuparam toda a região afetada[83]. Os êxitos fáceis obtidos nos primeiros combates, perante um inimigo ainda mal armado, que atacava em massa e a descoberto, o reduzido tempo que demorou a reocupação, e a ignorância acerca dos territórios e populações africanas, contribuíram para criar em alguns responsáveis em Lisboa a errada convicção que, em Angola, a guerra era de catanas “ao nível da Secção”.
Deste modo, compreende-se que a necessidade de repor urgentemente a situação no Norte do paralelo de Luanda tenha levado Lisboa, em 1961, a preferir a quantidade em detrimento de qualidade dos efetivos militares de reforço para Angola e também para a Guiné e Moçambique, com uma instrução insuficiente e inadequada. Na realidade, os efetivos militares mobilizados para os três TO passaram de 40.422 militares, em 31 de dezembro de 1961, para 75.829, em 1966, e 81.549, em 1972, o que aumentou consideravelmente as despesas e as dificuldades logísticas[84].

3.1. Dificuldades logísticas impostas a Portugal

A Guerra Subversiva de África iria ser caracterizada pelo isolamento crescente de Portugal, “um Estado de modesta presença na hierarquia de potências[85], e pela sua política de defesa do território nacional, que incluía as províncias ultramarinas, um centro fulcral para a vitalidade económica da nação, não hesitando em defender uma ocupação de 500 anos em África[86], fundamental para a segurança nacional. A política nacional manteve-se inalterada, mesmo após Marcelo Caetano ter tomado posse do governo, apelando à “continuidade e renovação”[87]. No entanto, a campanha internacional contra a política ultramarina portuguesa manteve-se acesa através de debates e resoluções condenatórias na ONU[88], embargo na venda de armamento de países ocidentais, corte nas relações diplomáticas e proibição de navegação aérea e marítima por parte de alguns países afro-asiáticos, aumento de incidentes nas fronteiras africanas, críticas de Estados membros da OTAN, entre outros. Para além da conjuntura internacional desfavorável a Portugal, resultado das críticas ao ultramar português, lideradas pelos blocos comunista e afro-asiático, inserido no confronto global da Guerra Fria, outros problemas tornariam a permanência em África numa missão extremamente ambiciosa: (1) insuficiência em recursos naturais, demográficos e financeiros; (2) guerra de cariz subversivo; (3) três TO distintos e separados por milhares de quilómetros; (4) manutenção de uma média anual acima de 100.000 homens em armas com os equipamentos associados; (5) conflito prolongado no tempo, de março de 1961 a abril 1974[89].

Ao nível do potencial humano, na véspera do conflito em África, Portugal dispunha de 8.889.392 habitantes no continente e ilhas adjacentes, 4.830.283 habitantes em Angola, 525.437 na Guiné e 6.603.653 em Moçambique. Reduzindo estes números aos escalões etários mais expressivos em termos militares, dos 20 aos 24 anos, o potencial humano é reduzido a 336.672 habitantes no continente e ilhas adjacentes, 208.853 habitantes em Angola, 21.256 na Guiné e 250.000 habitantes em Moçambique[90]. Neste contexto, em 1961, as FA portuguesas contavam com 79.000 efetivos[91], com um orçamento de defesa de 93 milhões de dólares, francamente diminuto quando comparado com outros Estados que tinham combatido ou combatiam em guerras semelhantes[92].

A natureza subversiva da guerra[93] iria exigir uma reorientação das FA de uma força convencional para outra preparada para a contrassubversão, caracterizada pela adoção de procedimentos táticos de pequenas unidades (PU), adaptadas às forças dos guerrilheiros[94], onde os aspetos tecnológicos eram encarados como fatores de menor importância[95]. De uma forma abreviada, a guerra subversiva é uma guerra interna[96], definida como “luta conduzida no interior de um território, por parte da população, ajudada e reforçada ou não do exterior, contra a autoridade de direito ou de facto, com o fim de, pelo menos, paralisar a sua ação”[97]. É prolongada, metódica e com o objetivo de conquistar o poder, correspondendo à “subversão em armas”[98]. A ausência de uma linha da frente, implicava que as colunas de reabastecimento logísticas podiam sofrer emboscadas e ataques provenientes de minas[99], o que implicou uma necessária implementação de contramedidas, com a modificação de viaturas[100] e dos procedimentos táticos. Desta forma, não admira que, quando se iniciaram as guerras em África, o EP não tivesse qualquer regulamento ou diretiva que apontasse procedimentos e normas logísticas, de uma forma geral, e muito menos sobre conflitos subversivos[101].
A média de efetivos das FA nos três TO, de 1961 a 1974, era de 117.000 militares. Com 49.422 efetivos, em dezembro de 1961, o número foi crescendo de forma exponencialmente inversa até 1970, verificando-se novo incremento até dezembro de 1973, onde foi atingido um máximo de 149.090 efetivos[102]. Este incremento deveu-se ao reforço dos efetivos dos três ramos das FA com recrutamento local que, em 1961, representava apenas 14,9% dos efetivos em Angola, 21,1% na Guiné e 26,8% em Moçambique e, em 1973, atingia 42,4% dos efetivos em Angola, 20,1% na Guiné e 53,6% em Moçambique[103]. Este crescimento, reflete as limitações em recursos demográficos e financeiros, uma vez que a carência de efetivos nunca se deixou de fazer sentir. Na realidade, em 1968, estavam a “atingir-se os limites” do que era razoável “exigir anualmente à nação em homens e dinheiro sem se comprometer a estabilidade presente e as bases do seu progresso económico e social”[104]. Neste contexto, verifica-se uma relação de proporcionalidade entre o fator distância e a percentagem de recrutamento local, ou seja, à medida que aumenta a distância dos TO de Lisboa, aumenta o número de recrutados nos respetivos TO, em proporção aos efetivos totais.
Na realidade, o esforço logístico que Portugal tinha que fazer para sustentar uma guerra nas “províncias ultramarinas” era enorme, devido principalmente ao fator distância: o principal porto de reabastecimento de Angola, em Luanda, dista por via aérea cerca de 7.300 quilómetros de Lisboa, o principal porto de reabastecimento da Guiné, em Bissau, encontra-se aproximadamente a 3.400 quilómetros por via aérea de Lisboa e a mais de 4.000 quilómetros de Luanda, e o principal aeródromo de reabastecimento de Moçambique, na Beira, dista cerca de 10.300 quilómetros de Lisboa, e o principal porto de reabastecimento, em Lourenço Marques[105], encontra-se a mais de 7.000 quilómetros de Bissau[106]. A distância que separava Lisboa dos TO era o principal obstáculo que Portugal enfrentava ao nível do apoio logístico, com o desgaste associado dos meios de transporte necessários, mas a distância dos territórios ultramarinos entre si, a dimensão dos mesmos[107], e as características dos TO, contribuíam para complicar ainda mais a sua defesa e o apoio de serviços[108]. Desta forma, Portugal teve de manter a guerra a um ritmo lento e com custos controlados. O aproveitamento dos recursos humanos e naturais ultramarinos contribuíram também para o desenvolvimento económico e social dos territórios, o que aumentou a capacidade de arcarem com uma parte substancial da defesa e dos custos da guerra[109].

segunda-feira, 10 de junho de 2019

10 de Junho


Porque razão o dia de Portugal se celebra a 10 de Junho? No dia 10 de Junho celebra-se em Portugal o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. O feriado nacional assinala ainda o dia da morte do poeta Luís Vaz de Camões, em 1580, autor d´Os Lusíadas. Do programa do Dia de Portugal fazem parte muitas actividades, como desfiles e demonstrações militares, por exemplo. Este é o dia da Língua Portuguesa e do cidadão nacional.
História do Dia de Portugal
Durante o regime ditatorial do Estado Novo de 1933 até à Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974, o dia 10 de Junho era celebrado como o “Dia da Raça: a raça portuguesa ou os portugueses”. Foi aproveitado para exacerbar as características nacionais. Como Camões foi uma figura emblemática, associada aos Descobrimentos, foi usado como forma de o regime celebrar os territórios coloniais e o sentimento de pertença a uma grande nação espalhada pelo mundo, com uma raça e língua comum.O 10 de Junho é estipulado como feriado, na sequência dos trabalhos legislativos após a implantação da República a 5 de Outubro de 1910. No decorrer desses trabalhos legislativos, foi publicado um decreto a 12 de Outubro, que definia os feriados nacionais. Alguns feriados foram eliminados, particularmente os religiosos, de modo a diminuir a influência da Igreja Católica e com o objectivo de consolidar a laicização da sociedade.




Os portugueses mais velhos recordam o que se passava no Terreiro do Paço

Os portugueses mais velhos recordam o que se passava no Terreiro do Paço



Escolha da Internet

domingo, 9 de junho de 2019

A LOGÍSTICA DE PORTUGAL NA GUERRA SUBVERSIVA DE ÁFRICA (1961 A 1974) I



A LOGÍSTICA DE PORTUGAL NA GUERRA SUBVERSIVA DE ÁFRICA (1961 A 1974)


Capitão
Pedro da Silva Monteiro


1. Introdução

Entre 1961 e 1974, Portugal esteve envolvido num conflito militar de cariz subversivo no continente africano contra os movimentos independentistas, no qual se procurou assegurar a sua presença através da força militar. A manutenção do império colonial era condição essencial para a sobrevivência do regime[1] e, no entender de muitos, de Portugal enquanto nação independente[2]. Neste contexto, o regime utilizou diversas estratégias no esforço de manter intactas as suas possessões em África, onde se destaca a presença permanente da manobra logística, “o fator vital da guerra”[3]. Na realidade, Portugal mantinha anualmente uma média de mais de 100.000 homens em armas em três teatros de operações (TO)[4] distintos, e separados entre si e da sua principal base de sustentação logística por milhares de quilómetros[5]. A guerra envolveu operações de combate[6] e operações logísticas[7] realizadas em larga escala, e de apoio às populações em Angola, a partir de março de 1961, na Guiné, após 1963, e em Moçambique, após 1964. Devido a todas as insuficiências em recursos naturais, demográficos e financeiros, a sustentação das operações militares revelava-se difícil, pelo que a manobra logística desempenhou um papel fundamental na consecução desse objetivo. Neste sentido, a análise do esforço logístico realizado por Portugal durante a guerra, torna-se fundamental para melhor se compreender o esforço operacional, os seus resultados práticos e a realidade da guerra. Pretende-se deste modo, contribuir para desvendar o que o historiador António Telo afirma ser um “verdadeiro enigma histórico”[8], quando se refere à capacidade de Portugal ter conseguido permanecer em África até 1974, e que John P. Cann classifica como “um notável feito de armas”[9].
A questão central deste trabalho é saber: em que medida a manobra logística de Portugal influenciou as operações militares nos três TO e contribuiu para a sustentabilidade da Guerra Subversiva de África, de 1961 a 1974?
Da questão central derivam outras questões que vão dar corpo ao trabalho: qual a estrutura logística de Portugal antes e durante da guerra? Que dificuldades sentiram os serviços de apoio logístico de Portugal e quais os maiores problemas verificados? O que esperava o governo português do sistema logístico? Quais as necessidades sentidas pelas forças em operações, e que abastecimentos foram fornecidos? Que apoios logísticos recebeu Portugal do exterior? Como é que os serviços de apoio logístico se adaptaram às exigências operacionais e que implementações foram feitas?
Este trabalho inicia-se em 4 de abril de 1949, data da adesão de Portugal à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), destinada a legitimar a aceitação internacional do regime e a garantir o “indispensável apoio exterior” ao rearmamento e modernização das Forças Armadas (FA)[10], necessário para a manutenção das “províncias ultramarinas”[11], e termina com a queda do regime em 1974.
O estudo irá iniciar-se com um enquadramento geopolítico e estratégico de Portugal antes da Guerra em África, seguindo-se a evolução logística portuguesa desde a adesão à OTAN até ao início da guerra, tendo como pano de fundo a sustentação das operações militares. Posteriormente, caracterizam-se as dificuldades logísticas impostas pela guerra, a projeção para África, as necessidades exigidas em campanha e os apoios recebidos, seguindo-se a análise à adaptação da manobra logística de Portugal aos TO. Finaliza-se o estudo com umas breves conclusões, contemplando a forma como a manobra logística possibilitou a sustentabilidade da Guerra Subversiva em África.

2. Portugal: da adesão à OTAN à guerra em África

2.1. Enquadramento Geopolítico e Estratégico
No final da Segunda Guerra Mundial, Portugal saiu política e economicamente reforçado[12], com avultadas quantias em reservas de ouro e em divisas[13]. A vida política em Portugal era regulada pela Constituição Política da Republica Portuguesa de 1933, que sobrelevava a independência nacional como algo transcendente[14], pelo que o império colonial foi incorporado na Constituição através do Ato Colonial[15], que segundo o historiador Fernando Rosas, representou uma iniciativa legislativa para centralizar política, administrativa e financeiramente a gestão das colónias “num todo indivisível com a cabeça na Metrópole”, onde residia “a essência orgânica da Nação Portuguesa”[16]. Como consequência, aumentou a ligação entre a Metrópole e os territórios ultramarinos através do reforço das trocas comerciais no espaço económico português, com maior proteção aos produtos portugueses e com a contenção da industrialização das colónias[17]. Entre 1945 e 1953, é lançado um programa de investimentos vasto mas todo ele controlado pelo Estado Português e de aplicação gradual[18]. Em Portugal Continental, fizeram-se investimentos ao nível da política de obras públicas, preparando as infraestruturas necessárias ao desenvolvimento económico, nomeadamente no campo da indústria, e ao nível das comunicações e transportes[19]. Em Angola e Moçambique, investiu-se nos transportes, na agricultura, em barragens hidroelétricas e na exploração mineira de cobre e carvão. A refinação de açúcar aumentou 40% em Angola, a produção de álcool duplicou e os têxteis de algodão quadruplicaram no período compreendido entre 1949 e 1959[20]. A população branca aumentou, fundamentalmente por razões políticas[21], de modo a despertar o interesse internacional pelos territórios portugueses, numa época de crescente isolamento de Portugal face à sua política ultramarina.
No entanto, apesar das diferenças ideológicas entre Portugal e as democracias ocidentais, o Estado Novo não se colocou à margem do novo sistema económico ocidental do pós-guerra, acabando por assinar a convenção que criava a Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE) e solicitar um empréstimo da ordem dos 625 milhões de dólares, no final de 1948[22]. No âmbito do Plano Marshall, Portugal conseguiu que as colónias fossem abrangidas nos programas de ajuda norte-americana e conseguiu importantes apoios financeiros, “cerca de 90 milhões de dólares, um montante que serviu de catalisador para a sua economia”[23]. A integração de Portugal na Associação Europeia do Comércio Livre, European Free Trade Association (AECL/EFTA), em 1960, simbolizou a abertura aos mercados externos[24]. Portugal aderiu ainda ao Banco Mundial (BM) e ao Fundo Monetário Internacional (FMI)[25]. O impacto do capital estrangeiro na economia nacional permitiu o desenvolvimento de indústrias nos territórios ultramarinos, sustentado sobretudo por investimentos estrangeiros privados, nomeadamente da Bélgica, nas minas de diamantes, do Reino Unido, aplicado nos caminhos-de-ferro e dos EUA na exploração petrolífera. Este investimento somava, em 1961, cerca de 15% do capital fixo bruto do Ultramar, o que tornava as possessões ultramarinas economicamente viáveis, e aumentou para quase 25%, em 1966[26].
No plano internacional, o fim da Segunda Guerra Mundial conduziu à divisão do mundo em dois blocos antagónicos com dois polos de poder: os EUA e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O sistema internacional configurou-se como bipolar, passando o Reino Unido para segundo plano, resultando num permanente estado de tensão entre estes dois blocos[27] que ficou conhecido por Guerra Fria. Neste contexto, a URSS[28], “paralisada numa ação direta, adotou uma estratégia indireta” através do apoio a todas as insurreições, visando o “enfraquecimento do Ocidente”[29], liderado pelos EUA[30]. Esta agressão indireta e subversiva foi utilizada nos TO de Angola, Guiné e Moçambique, através dos apoios financeiros, de formação e em armamento à insurreição. Apesar do ambiente de tensão no sistema internacional, a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) pretendia inaugurar uma nova época de paz e convivência entre os povos, nomeadamente o fim dos sistemas totalitários e a implantação de regimes democráticos. Com a aprovação da declaração universal dos direitos do homem e consequente regra de “um homem um voto”, independentemente das condições, emergiu inevitavelmente o anticolonialismo, que resultou no reconhecimento à autodeterminação na vida social e, por extensão, o direito à autodeterminação dos povos[31]. Assistiu-se assim ao início da crise do sistema colonial português, com o “amadurecimento de um movimento que vinha de 1945”, materializado com a independência da Índia e Paquistão, em 1947, acelerando a retirada das soberanias coloniais de África. No entanto, esta retirada derivou de uma revisão da logística de cada império e não do reconhecimento das “maturidades políticas”[32].
Em 1949, ocorre a entrada ponderada de Portugal na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), com o objetivo de controlar a hegemonia da URSS através de uma aproximação aos EUA[33], numa altura em que o Reino Unido já não garantia as “funções tradicionais da aliança”[34]. Para Salazar, a manutenção da integridade dos territórios ultramarinos conviria aos ocidentais[35], pois tinha a “reservada convicção” que a Terceira Guerra Mundial era previsível[36]. Deste modo, durante a fase das negociações para a adesão à OTAN, procurou obter a inclusão das colónias no âmbito da defesa coletiva[37], argumentando que a importância estratégica de Portugal, permitiria controlar as mais importantes rotas marítimas no Atlântico Sul e a ligação entre o Índico e o Atlântico e, acima de tudo, em caso de uma invasão soviética, dava a “profundidade estratégica” à Europa, concedida pelos territórios portugueses em África[38]. Com esta adesão, Portugal conseguiu dois objetivos fundamentais: no campo político, obter a legitimação e a aceitação internacional do regime, e no campo militar, garantir o apoio exterior à execução do processo de rearmamento e modernização das FA iniciado antes do conflito ultramarino[39].
A Constituição de 1933 acabou por se concretizar na reforma de 1951[40], na qual foram substituídos os termos “império” e “colónia” e a designação “províncias” começa a ser aplicada aos territórios ultramarinos para defesa da tese integracionista[41]. Neste contexto, Portugal assinou ainda dois acordos de auxílio militar: o Acordo de Auxílio Mútuo para a Defesa, em 5 de janeiro de 1951, que regulava o fornecimento de equipamento militar norte-americano e sedimentava a defesa de Portugal no Atlântico Norte, e o Acordo de Defesa entre Portugal e os EUA, em 6 de setembro de 1951, que concedia aos EUA a base dos Açores em caso de guerra durante a vigência da OTAN[42].
Em 1953, a economia portuguesa sofreu reformas profundas e estruturais com a implementação do I Plano de Fomento (PF), aprovado pela Lei n.º 2058, de 29 de dezembro de 1952, destinado ao período de 1953 a 1958 que, embora fosse direcionado aos investimentos públicos, permitiu iniciar-se em Portugal uma séria industrialização. Seguiu-se o II PF, aprovado pela Lei n.º 2094, de 25 de novembro de 1958, destinado ao período de 1959 a 1964, que estaria em fase de implementação quando se iniciou a guerra em Angola[43].
O falhanço da operação anglo-francesa no Suez, em 1956, sob pressão dos EUA e URSS, revelou ao governo português a tendência, a curto prazo, para o desenvolvimento dos nacionalismos africanos[44]. Este afastamento norte-americano, levou a uma reorientação do esforço do governo português para a defesa do império, em detrimento da participação na OTAN. Os Decretos-Lei (DL) 41 559 e 41 577, aprovados no início de 1958, viriam a alterar a organização militar do império, com o aumento de efetivos, dispersão das forças ultramarinas[45], envio de militares dos quadros para as “províncias” para cumprir serviço de três anos e envio de oficiais portugueses para frequentar cursos de contraguerrilha no estrangeiro, nomeadamente na Bélgica, Espanha e França, embora em número reduzido, devido à falta de apoio dos EUA[46]. Na realidade, até 1958, a posição dominante em Portugal era a da inevitabilidade da Terceira Guerra Mundial, daí a organização, preparação e equipamento das forças terrestres ultramarinas seguirem os padrões convencionais destinados a atuar no TO europeu. Só após janeiro de 1959 é que a prioridade do “esforço militar passou da Europa para o Ultramar”[47], tornando-se oficial em agosto de 1959, com a aprovação de um memorando, elaborado pelo Conselho Superior de Defesa Nacional, onde se remetem para segundo plano os compromissos com a OTAN e os acordos com Espanha, as “duas principais preocupações da defesa nos últimos dez anos”, passando o “esforço de defesa do Ultramar” a assumir a prioridade[48]. Esta alteração de direção de esforço militar, além de problemas de mentalização, causou dificuldades de ordem financeira, devido à necessidade de uma remodelação profunda nas forças terrestres que possibilitasse o cumprimento das tarefas no Ultramar, e ao nível do equipamento, cujo material recentemente recebido ao abrigo do Mutual Defence Assistance Program (MDAP) não podia sair da Metrópole[49].
Deste modo, em 1959, “Portugal não possuía uma capacidade militar autónoma, com adequados níveis de prontidão e de sustentação das forças”, que garantisse a integridade do território nacional[50]. Para remediar a situação, com vista à possibilidade iminente de uma guerra subversiva em África, intensificou-se, no verão de 1959, o envio de oficiais ao estrangeiro no sentido de recolher conhecimentos de experiências nesta tipologia de operações, especialmente na Argélia. O resultado dos conhecimentos adquiridos materializou-se na criação do Centro de Instrução de Operações Especiais, em Lamego, em 1960, e na publicação por Portaria, de 9 de fevereiro de 1963, de nova doutrina e regulamentação: “O Exército na Guerra Subversiva”, em cinco volumes[51]. A nova doutrina refletia o conhecimento prévio dos aspetos que dominavam militar e socialmente a guerra, subordinada ao objetivo político de manutenção do império[52]. A consciência de que “a luta seria prolongada”[53], orientou as operações de contrainsurreição para a manutenção do “conflito a uma escala reduzida, lento e com poucas despesas”[54]. Desta forma, pretendiam-se alcançar dois objetivos fundamentais: permitir a sustentação da guerra por um longo período, e ganhar a confiança da população, através da sua proteção[55].


sexta-feira, 7 de junho de 2019

Angola - 1969*1971

12 de Julho de 1969
Ida

Na ida



Foi por um destes,
                     o dia ao certo, não posso recordar
se foi Sábado ou
Terça-feira
o interesse era voltar
muitos chegámos
alguns,
infelizmente,
por infame glória
indigna de enredo e de
historia,
por lá lhes foi ceifada a vida, que
lutámos,
na força da sua,
da nossa juventude
... os Deuses sempre ajudam uns . .



Ex-combatentes - Estatuto




quarta-feira, 5 de junho de 2019

Guerra Colonial - drogas IIII



1 Neste artigo, para simplificar, “consumo” e “uso” são usados como sinónimos.

2 A Guerra Colonial Portuguesa é também chamada Guerra do Ultramar ou Guerra de Libertação Nacional, se vista por outros prismas. Menos frequentemente, é também designada como Guerra(s) de África.

3 A pesquisa assenta em entrevistas não dirigidas (Devillard, Mudanó e Pazos 2012; Kvale 2006; Rubio 2006) realizadas com ex-combatentes do exército português que prestaram serviço na Guerra Colonial Portuguesa e foi complementada com uma recolha bibliográfica extensiva, focada essencialmente num conjunto de biografias, histórias de vida e relatos biográficos centrados na experiência de guerra em África. Num segundo momento, porque tal se justificou, estendeu-se a pesquisa ao ciberespaço (Calado 2006, 2009, 2013) e aplicou-se um inquérito online a ex-combatentes. O conjunto de narrativas e textos analisados é composto pelas entrevistas realizadas propositadamente, pelos textos editados em livro, pelos textos publicados no espaço digital que foram recolhidos e pelas respostas às perguntas abertas do questionário online, daqui para a frente designadas genericamente “testemunhos”. Alguns dos argumentos apresentados resultam da troca de ideias com o meu colega Luís Vasconcelos e também com os professores Miguel Vale de Almeida, Brian O’Neill e, sobretudo, Francisco Oneto, a quem estou agradecido.

4 Quando aqui se fala de “ex-combatentes” ou, mais genericamente, de “militares”, está-se a incluir somente aqueles que participaram na Guerra Colonial Portuguesa incorporados nas forças armadas portuguesas e a excluir os membros dos movimentos independentistas africanos. Da mesma forma, quando se fala em “militares portugueses” está-se a incluir militares africanos que lutaram do lado das tropas portuguesas.

5 Não foi o mesmo ter estado numa região pacificada ou numa região militarmente ativa, haver tido funções operacionais e cumprido missões no “mato” ou ficado cingido apenas a funções administrativas e não ter saído do quartel, por exemplo.

6 “Drogas” e “substâncias psicoativas” são aqui usadas como sinónimos e incluem todas as substâncias que, depois de ingeridas, condicionam o sistema nervoso central (estimulantes, depressoras ou alucinogénias), atuando sobre o estado de consciência, o humor ou, mais genericamente, o funcionamento cerebral. Neste sentido, tanto o álcool como a canábis, as duas substâncias discutidas neste artigo, são substâncias psicoativas. Ao contrário do sistema jurídico-legal, que separa claramente as duas substâncias, acompanha-se os argumentos de Geoffrey Hunt e Judith Barker (2001) de crítica à tradição das ciências sociais, e da antropologia em particular, de autonomizar o estudo de álcool e drogas ilícitas, criando duas tradições académicas distintas.

7 O discurso hegemónico acerca da Guerra Colonial Portuguesa tende a secundarizar ou omitir a experiência e a perspetiva dos militares de incorporação local – isto é, aqueles nascidos ou que viviam nos territórios africanos –, cujo número nas forças armadas portuguesas foi aumentando à medida que ia progredindo o conflito militar (Gomes 2013).

8 Os militares portugueses viram-se imersos num mundo “exótico”, tanto do ponto de vista do mundo natural como do ponto de vista cultural, exprimindo nos seus registos biográficos espanto, fascínio e consciência das diferenças na natureza e na vida dos povos africanos.

9 Alguns militares, por exemplo, relatam a experiência de comer camarão cozido pela primeira vez (Oeiras 2009). Por outro lado, bebidas como a Coca-Cola ou a Pepsieram de venda proibida na “Metrópole”, mas de venda livre nas “colónias”. Por causa disso, conta Vítor Santos, que participou na Guerra Colonial Portuguesa, em Moçambique, enquanto sapador de minas, “coca-cola [era o] nome dado pelos militares da metrópole aos naturais de Lourenço Marques” (2013: 112).

10 Excluem-se as chamadas “tropas especiais” – comandos, fuzileiros, paraquedistas, entre outras – de natureza ofensiva e com missões operacionais específicas, maioritariamente de ataque.

11 A experiência de guerra inclui casos de militares que não chegaram a disparar um tiro e / ou não se depararam com o inimigo uma única vez. Neste sentido, ter “ido à guerra” é mais do que a vivência operacional e militar.

12 Manuel Bastos inicia assim o seu livro Cacimbados: A Vida por Um Fio: “Chamavam esgazeados aos ex-combatentes da Grande Guerra e cacimbados aos da Guerra Colonial Portuguesa, associando os seus traumas, no primeiro caso às bombas de gás e no segundo ao clima de África” (2008: 9). Também Maria José Lobo Antunes, na sua recente etnografia de uma companhia militar que esteve em Angola entre 1971 e 1972, aborda a figura do “cacimbado”, designando-a como “uma suave loucura” responsável por tornar os “militares capazes dos mais impensados disparates” (2015: 150).

13 O Cancioneiro do Niassa consiste num conjunto de adaptações de fados e canções em voga (de Bob Dylan a José Afonso), que, de forma humorística e sarcástica, abordam a temática da Guerra Colonial Portuguesa do ponto de vista do soldado e das condições de vida. As adaptações foram feitas por militares portugueses estacionados na região do Lago Niassa, em Moçambique, e tornaram-se rapidamente populares em muitos quartéis de outras regiões, servindo como uma forma de contestação à ordem estabelecida e, sobretudo, à cadeia de comando.

14 De forma provocatória, “vício” é aqui entendido num duplo sentido: como algo que é considerado adictivo e compulsivo e, simultaneamente, como algo que desafia a moral e pode ser visto como transgressão e / ou um desvio às normas morais.

15 Como refere Luís Oeiras, no seu livro de memórias Mueda-Lua, a história política e social da Guerra Colonial é extensa e exaustiva, mas a dos combatentes não (2009: 9).

16 Na Guerra Colonial Portuguesa, de acordo com os testemunhos, a regra de não haver consumo de bebidas alcoólicas durante operações militares era genericamente cumprida. No entanto, alguns ex-combatentes confirmam a ingestão de bebidas alcoólicas durante saídas operacionais, não obstante tal ser consensualmente considerado algo perigoso e uma inconsciência.

17 A regra geral era que os quartéis portugueses em África tivessem espaços diferentes para praças e graduados comerem e beberem, acontecendo por vezes que sargentos e oficiais partilhavam o mesmo refeitório, mas tinham espaços autónomos para adquirir e consumir bebidas alcoólicas (messe de oficiais e bar de sargentos).

18 A pergunta era colocada antes de no questionário se falar de álcool e drogas, pretendendo-se, assim, evitar o enviesamento das respostas.

19 António Lobo Antunes, que entre 1971 e 1972, esteve presente na Guerra Colonial Portuguesa como médico militar em Angola, revela nas suas cartas enviadas de África para a mulher, entretanto reunidas em livro, o quão baratas eram vendidas as bebidas alcoólicas nos quartéis. De facto, embora não bebesse, o médico aproveitava para as comprar e enviar para Lisboa: “Como todos os meses compro uma garrafa, já vou em 4 de uísque. Vou agora mudar-me para os conhaques, gins, etc., de modo a que, quando voltar, tenhamos uma boa garrafeira. São tudo marcas ótimas, e saem a cerca de 100.00 cada. Parece-me que vale a pena” (2005: 175).

20 Por exemplo, os entrevistados tendem a associar o alcoolismo sobretudo a casos em que o consumo excessivo de álcool era um hábito anterior ao serviço militar. Por outro lado, alcoólico não era quem bebia muito, mas sobretudo quem bebia constantemente, quem “não sabia beber” ou não aguentava os seus efeitos e se embriagava recorrentemente (“maus vinhos”).

21 Em contrapartida, alguns ex-combatentes que estiveram na Guiné durante a Guerra Colonial Portuguesa referem o consumo, quase sempre experimental e esporádico, de noz de cola, fruto de plantas ricas em cafeína e com efeito estimulante, que era usado tradicionalmente em algumas regiões da parte ocidental do continente africano (Lovejoy 2007 [1995]).

22 Entre estas personagens-chave destacavam-se os soldados de incorporação local que serviam no exército português, e cujo número foi crescendo com o decorrer do conflito (F. Rodrigues 2012).

23 Tudo indica que, pelo contrário, em pontos nevrálgicos e de confluência dos militares – como a cidade de Mueda, em Moçambique –, a canábis tinha uma presença mais forte.

24 Assistiu-se à mesma resistência em abordar certos temas e ao traçar da “fronteira que separa o que deve ser lembrado do que deve ser esquecido” de que fala Maria José Lobo Antunes (2015: 374).

25 Na primeira página do Diário de Lisboa, de 11 de fevereiro de 1961, escrevia-se acerca do “grupo de alucinados” responsável pelos ataques: “alguns estavam verdadeiramente narcotizados […], outros teriam bebido fortemente e davam mostras da bravura inconsciente mas inefetiva dos etilizados, mas outros ainda teriam tomado coca-cola na qual dissolveram comprimidos de aspirina – que constitui uma espécie de droga barata e que produz uma embriaguez heroica”.

26 Cachipembe (ou caxipembe) é uma bebida alcoólica tradicional angolana, concretamente uma aguardente destilada a partir da fermentação de farelo de milho.

27 O termo “cafre” é de origem árabe, equivalente a “bárbaro”, e era usado na África portuguesa para designar povos depreciativamente considerados “incultos” e “infiéis”.

28 Em Uma Breve História da Cannabis em Portugal, Luís Torres Fontes e João Carvalho falam da improbabilidade que foi os europeus terem lidado “com a cannabis durante séculos sem se darem conta dos seus poderes psicoativos” (2011 [2002]: 176), o que só começou a mudar com a publicação em 1563 dos escritos do português Garcia de Orta sobre as plantas medicinais da Índia (Booth 2005).Top of page

References
Bibliographical reference

Vasco Gil Calado, « As drogas em combate: usos e significados das substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa », Etnográfica, vol. 20 (3) | 2016, 471-494.
Electronic reference

Vasco Gil Calado, « As drogas em combate: usos e significados das substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa », Etnográfica [Online], vol. 20 (3) | 2016, Online since 27 November 2016, connection on 05 June 2019. URL : http://journals.openedition.org/etnografica/4628 ; DOI : 10.4000/etnografica.4628Top of page

About the author

ISCTE-IUL; SICAD, Portugal

terça-feira, 4 de junho de 2019

Guerra Colonial - drogas III

Palavras finais

  • 25 Na primeira página do Diário de Lisboa, de 11 de fevereiro de 1961, escrevia-se acerca do “grupo de (...)
  • 26 Cachipembe (ou caxipembe) é uma bebida alcoólica tradicional angolana, concretamente uma aguardente (...)
46As drogas entram na Guerra Colonial Portuguesa desde o início: quando em 1961 se dão em Angola os primeiros ataques levados a cabo por independentistas ligados à UPA e ao MPLA, logo na imprensa portuguesa os “terroristas” são descritos como “bárbaros assassinos” e é feita uma “ligação sistemática ao consumo de drogas e ao recurso a feitiços” (M. J. L. Antunes 2015: 64).25 De facto, na altura foi repetidamente dito que os autores dos massacres agiam cegos e enlouquecidos, sob influência direta de canábis e cachipembe 26 (Wheeler e Pélissier 2009 [1971]; Valahu 1968).
  • 27 O termo “cafre” é de origem árabe, equivalente a “bárbaro”, e era usado na África portuguesa para d (...)
47Não era inaudita a relação entre canábis e violência em África (Bergen-Cico 2012). O caso mais frequentemente citado é o dos guerreiros zulus da atual África do Sul, que tinham por hábito fumar canábis antes de entrar em batalha (Toit 1975), prática que o explorador britânico David Livingstone registou no século XIX (James e Johnson 1996). Mas já antes disso, em 1767, o governador de Moçambique, Pereira do Lago, falava dos cafres da Ilha de Moçambique, que “bêbados de um fumo infernal e pernicioso se alucinam para toda a qualidade de homicídios” (citado em L. D. Antunes 2006: 205).27
  • 28 Em Uma Breve História da Cannabis em Portugal, Luís Torres Fontes e João Carvalho falam da improbab (...)
48A canábis circula pelo continente africano pelo menos desde o século XII, tendo sido inicialmente introduzida a partir da Ásia através de rotas de comércio árabes (Klantschnig 2014; Nahas 1982). Com o tempo, alguns povos africanos aprenderam a dominar os seus efeitos psicoativos e desenvolveram o seu consumo, nomeadamente de forma ritualizada (Emboden 1990 [1972]). Na Europa, pelo contrário, o consumo de canábis não se enraizou como costume cultural e é bastante recente (Pollan 2001), embora a sua utilização para fins comerciais, nomeadamente o aproveitamento das fibras do cânhamo, fosse quase milenar (Fontes e Carvalho 2011 [2002]).28
49Também o consumo de bebidas alcoólicas era algo fortemente enraizado em África: o álcool afirmou-se sempre como a substância psicoativa mais consumida por todo o continente africano, nomeadamente na forma de vinhos, cervejas e licores de fabrico artesanal (Ambler, Carrier e Klantschnig 2014; Medeiros 1988; Capela 1973). No entanto, durante a Guerra Colonial, as tropas portuguesas não demonstraram para com as bebidas alcoólicas africanas o mesmo interesse que devotaram à canábis: limitaram-se a experimentá-las, mas, salvo raras exceções, não as adotaram e muito menos pensaram em trocá-las pelas suas próprias, nomeadamente a cerveja e o whisky.
50Sensivelmente ao mesmo tempo que os soldados norte-americanos adotaram o consumo de drogas ilícitas na Guerra do Vietname, os militares portugueses depararam inesperadamente com a canábis num contexto de guerra, através das populações africanas negras. Experimentaram-na, deram-lhe uso, apropriaram-se dela e alguns trouxeram-na mesmo de volta a casa. De facto, alguns autores (Fontes e Carvalho 2011 [2002]) apontam os militares que regressavam da Guerra Colonial Portuguesa como os principais divulgadores do consumo de canábis (liamba) na “Metrópole” antes do 25 de Abril.
51Tudo isto se passou nos finais da década de 60 e inícios de 70 do século XX, altura em que o mundo ocidental iniciava uma “cruzada” contra as drogas ilícitas, assente no proibicionismo. Embora o primeiro tratado internacional de controlo de drogas tenha sido acordado em 1912, foram as convenções da ONU de 1961 e 1971 que definitivamente estabeleceram um novo paradigma. Se para todos os efeitos o consumo de drogas ilícitas em Portugal continental era praticamente inexistente (Agra e Fernandes 1993), é neste período que o tema emerge como objeto do discurso político (Poiares 1995) – por pressão externa e provavelmente em função do alarme suscitado com a associação entre drogas e subversão juvenil a que se assistia noutros países – e se tomam as primeiras iniciativas, que culminam com a campanha “droga-loucura-morte”, de 1972.
52Ao mesmo tempo que o poder político fazia assentar o seu discurso sobre as drogas ilícitas numa linguagem bélica e num conjunto de metáforas militares (guerra, combate, inimigo), longe de casa, as tropas norte-americanas e portuguesas consumiam-nas sem grandes consequências disciplinares e, muito menos, criminais. Mais do que isso, no caso português, os jovens envolvidos na Guerra Colonial parecem ter sido mesmo os primeiros a consumir a canábis de forma expressiva (se se excluir os jovens nascidos ou residentes nas então colónias portuguesas de Angola e Moçambique).
53De acordo com os testemunhos dos ex-combatentes, e pesem embora todas as dificuldades advindas de um tema manifestamente difícil e incómodo, pode dizer-se que os usos de álcool e canábis tinham o mesmo propósito: fazer esquecer, mesmo que temporariamente, a experiência da guerra e tornar possível a vida em tão duras condições. Para entender o consumo, é imprescindível conhecer as circunstâncias.
54O que a história dos usos de álcool e canábis por parte de militares portugueses envolvidos na Guerra Colonial releva é o papel absolutamente central das motivações de consumo, das normas, dos significados e do enquadramento social (Klein 2012; MacRae 2001; Zinberg 1984). Dito de outra forma, as drogas – sejam elas de caráter lícito ou ilícito – não se podem reduzir às suas propriedades farmacológicas, pois a sua ação está intimamente dependente dos referentes socioculturais dos grupos sociais que as utilizam, contrariando as visões dominantes assentes nas visões médicas e criminais (Milhet et al. 2011; Romaní 1999).
55Só assim se compreende que a canábis, uma droga que começa por ser tida como um “intoxicante” que instiga a violência do inimigo, seja mais tarde usada como uma fonte de “evasão” da violência do quotidiano. As drogas são sempre algo mais do que substâncias com determinadas propriedades farmacológicas, e o contexto histórico e social é tudo. Ou quase tudo.
56Em resumo, os usos de álcool e canábis na Guerra Colonial Portuguesa são mais um episódio da história das drogas assente nas trocas, no fluxo e na circulação dos produtos – neste caso, as bebidas alcoólicas que são levadas de Portugal continental para as (então) colónias africanas, incluindo as mais remotas áreas onde estivessem militares portugueses, e uma planta com propriedades psicoativas que circula das populações negras africanas para os quartéis portugueses. E é uma história que, para ser compreendida, deverá ser contada atendendo, por um lado, ao contexto político, social e económico e, por outro, às experiências e às motivações dos consumidores. É esse o desafio da antropologia num terreno minado como é o campo das drogas, há muito tempo dominado pelo biopoder.