Os filhos dos ex-combatentes também têm memórias da guerra
Muitas famílias portuguesas têm baús de guerra. Lá dentro há álbuns de fotografias, cartas, estatuetas africanas e medalhas. Foi através destes objectos que os filhos dos ex-combatentes ouviram falar sobre a guerra colonial, pelo menos a parte das histórias que os pais lhes quiseram contar. Alguns, como Susana, quando cresceram ganharam curiosidade e perguntaram: "Pai, mataste alguém?" Outros, como Alexandra, tiveram medo da resposta e calaram-se. Por Catarina Gomes (texto) e Miguel Manso (fotografias)
Muitos pequenos-almoços eram assim, não havia canecas para beber leite nem pratos para pôr pão, à hora do jantar já se sabia que voltava a haver novos pratos e copos porque os pais tinham passado a tarde no Braz & Braz a comprá-los, como se bastasse voltar a ter louça para retomar a normalidade e esquecer que, na véspera, o pai tinha partido a casa toda, que tinha acordado a meio da noite "com gritos horríveis, suado, com um olhar que não consigo descrever" a brandir uma catana que tinha trazido da Guiné e a dizer à mulher e aos filhos pequenos "saiam de casa senão mato-vos a todos".
Eles vestiam-se à pressa e fugiam para onde fosse, para a rua, para casa de uma vizinha que já conhecia a rotina. "Amanhã isto passa-lhe."
"Passei a infância a fugir de casa. Não vivi infância de criança", diz Alexandra Penteado, de 37 anos. Ela tem memórias destas desde os três anos até ter uns 20. "O meu pós-guerra foi muito tempo."
Alexandra Penteado é filha de um ex-combatente da guerra colonial na Guiné com stress pós-traumático. Faz parte de uma geração a que uma investigação pioneira em Portugal chama "Filhos da guerra". "Esta é a minha história, há milhares. Somos adultos marcados por coisas que não vivemos."
Uma equipa de dez investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra foi falar não com os que combateram entre 1961 e 1974 em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, mas com os seus filhos, uma geração hoje com idades entre a casa dos 40 e a dos 20 anos. Foi perguntar-lhes pelas suas memórias de guerra.
Parece estranho que quem não viveu a guerra possa dela ter memórias, mas é isso que acontece. "Não a experienciaram, mas cresceram mergulhados em narrativas e objectos sobre a guerra vivida pela geração dos pais", explica a coordenadora do projecto, Margarida Calafate Ribeiro. Chama-lhes "pós-memórias", um conceito já usado noutros estudos para abordar realidades como a dos filhos dos sobreviventes do Holocausto, filhos de desaparecidos e presos políticos na ditadura da América Latina, pessoas marcadas por uma realidade que não vivenciaram.
Margarida Calafate Ribeiro explica que tudo começou com as mães. Quando fez um trabalho sobre mulheres que acompanharam os militares para a guerra percebeu que "a guerra é uma coisa de família, não é só de ex-combatentes". Percebeu que, no regresso a Portugal, enquanto os "pais viviam no silêncio, eram as mães que explicavam aos filhos por que é que o pai foi para a guerra, por que é que o pai rebentou com uma porta que não conseguia abrir, por que é que o pai fuma desenfreadamente, por que é que o pai durante anos se metia debaixo da cama quando ouvia um barulho. São coisas que aconteceram em casas portuguesas. Estamos a falar de homens que tiveram vidas normais, não estamos só a falar de casos de stress pós-traumático".
Fotografias e cartas
Durante a guerra colonial, houve cerca de um milhão de homens mobilizados para África. Quantos filhos cresceram a ouvir histórias dos pais? Explicações das mães? "Se forem dois filhos por casal podemos estar a falar de um terço da população portuguesa, é uma massa muito grande de gente", responde. Estima-se que 120 a 140 mil homens sofram de stress pós-traumático, estamos portanto a falar de cerca de 120 a 140 mil homens e respectivos filhos. A equipa do Centro de Estudos Sociais, que envolveu também psiquiatras, avaliou psicologicamente estes filhos da guerra e encontrou "valores mais elevados nas dimensões de negligência física e emocional nos que tinham pais com trauma".
Ao longo da investigação descobriram que, no meio de tantos percursos singulares, havia nas casas onde estes "filhos da guerra" cresceram objectos "arrumados no baú da guerra" e muitos eram comuns: do álbum de fotografias à correspondência para Portugal e aos objectos de artesanato local.
O álbum das fotos do tempo da guerra foi quase sempre a primeira porta de entrada dos filhos na realidade de guerra destes pais que, na maior parte dos casos, aconteceu antes de eles terem nascido. Para Paulo Peixoto, de 42 anos, filho de um ex-combatente em Angola, o álbum fotográfico assumiu na sua infância estatuto de brinquedo.
Hoje, já adulto, consegue reconhecer no álbum "uma selecção de momentos bons. Havia muitas fotografias de praia, do pai e dos amigos a jogar à bola, dele deitado no camião [era condutor], dele sentado em pilhas de cerveja. A única visão do inimigo é dele fardado ao lado de uma placa que diz zona de "turras", dele fardado no capim, como se estivesse a combater, para parecer real. Eram fotos encenadas", recorda Paulo Peixoto, professor universitário de Sociologia.
No meio do álbum estavam as cartas trocadas entre o pai e a mãe. Ele leu-as todas por volta dos 10 anos - o pai a contar o seu dia-a-dia. "Num dia a situação estava mais calma, noutro menos", havia menções a pessoas do pelotão - "ou será batalhão? Nunca sei" - que morriam, do receio das emboscadas e das minas, do desejo de voltar são e salvo a Portugal e poder casar com a minha mãe, que era madrinha de guerra dele." Eram excertos de "perigos potenciais" contados em jeito "de aventura". Eram cartas feitas para sossegar quem as recebia, não eram propriamente desabafos, conta.
Paulo Peixoto cresceu também envolto em objectos vindos desse local longínquo chamado África. Em criança "andava por casa uma catana de desbravar mato, quando a mãe se distraía brincava com ela, como o Sandokan". Chegaram a ser africanas "as cadeiras onde nos sentávamos, os tapetes que animavam as paredes com animais coloridos, as mantas e esculturas. Tínhamos a casa cheia disso". O tempo foi passando e a parafernália africana foi sendo arrumada. Na casa dos pais só restam hoje duas almofadas.
"Nunca vivi com a dimensão da morte, nunca nos foi passado isso. [O meu pai] nunca nos contou histórias de drama e de guerra." Parece que foram "umas férias", foi essa a impressão com que Susana Gaspar, actriz de 23 anos, ficou dos relatos do pai, que combateu em Angola. Tanto que, para ela, em criança, nem sequer era o álbum da guerra, "era o álbum da tropa", como se aquelas imagens fossem apenas de momentos de treino. Para ela, ir aos almoços dos ex-combatentes foi durante muito tempo como ir a convívios "de colegas de trabalho do meu pai". Só quando foi ficando mais velha foi reparando que nas fotos havia elementos estranhos que lhe diziam que aquilo não podia ser a tropa em Portugal. Havia macacos, o pai "a dançar com as pretinhas", o pai a fumar e a beber e palavras desenhadas com balas.
O pai de Susana Gaspar "é reservado" e ela foi sendo apenas ouvinte desses relatos do que pareciam ter sido tempos bem passados na juventude. "Desconfiava que não tinham sido bem férias", até que decidiu explorar o tema com mais dois filhos de ex-combatentes no projecto teatral Ignara Guerra, que desenvolveu entre 2007 e 2009. O interesse em abordar o tema da guerra colonial de forma artística fê-la, pela primeira vez, ir ter com o pai e fazer-lhe perguntas, algumas que lhe custaram. Alguma vez tinha matado alguém? Ele respondeu que não. Teve medo? Ele respondeu que "teve mais medo dos jacarés do que do inimigo" e lá saiu a história do dia em que "ia num barco a fazer vigia nos rios e um colega foi atingido no braço, caiu ao rio e não morreu do tiro mas dos jacarés - ele assistiu. Foi com este episódio, arrancado a ferros, é que eu vi que não tinham sido férias".
"A maioria das recordações e narrativas de infância [dos filhos da guerra] são positivas", sublinha Margarida Calafate Ribeiro, algumas porque o foram, outras porque "foram transformadas em narrativas agradáveis" para poderem ser contadas aos filhos pequenos. A investigadora lembra a história de um ex-combatente que transformou o episódio de uma emboscada na Guiné num rio com crocodilos numa história de aventuras que contava ao filho antes de ele adormecer. "Havia uma pulseira de tornozelo que andava lá por casa e que o pai dizia que tinha sido encontrada na boca de um crocodilo", quando "a verdade é que devia ser de alguém que ficou sem perna".
Talvez seja verdade que, quando se é pequeno e corre tudo bem, 90 por cento do que aconteceu esquece-se, como diz Alexandra Penteado. É verdade que "o tempo elimina más recordações", nota Margarida Calafate Ribeiro, mas nestas histórias houve um trabalho de triagem. "O que passa mais para os filhos são as historinhas."
As histórias más, as verdadeiramente más, ficam por contar. Há memórias de guerra que não se partilham com os filhos, afirma a investigadora, há memórias que não se partilham com ninguém sem ser com os companheiros de guerra. Porque não dá para contar como foi a quem não viveu, disse-lhe um dia um ex-combatente. "Sabe o que é uma emboscada? É gente a fugir, cheiro a mijo, do medo da morte." Há coisas que só se contam aos companheiros.
Assim se explica a proliferação de convívios de ex-combatentes, nota a investigadora. "Os almoços têm função terapêutica." Há pais que levaram os filhos e, aqui, quando muito, "há histórias que os filhos foram apanhando".
Uma condecoração
Alexandra Penteado foi com a família a muitos destes convívios e havia sempre uma altura em que alguém subia ao palanque e contava uma história. Por norma eram engraçadas, como a do capitão "que rezava à santa e aos anjinhos" e era gozado pelos outros. Mas houve uma vez que rompeu com "o código de silêncio" entre ex-combatentes. Era a história de "uma guineense que trazia uma granada num cesto e ia entrar num café com militares. Um deles apercebeu-se e matou-a com um punhal". Alexandra Penteado tinha 14 anos quando ouvi essa história e recorda a incomodidade do momento, de caras que mostravam que o narrador "tinha ido longe de mais".
Ao contrário de Susana Gaspar, Alexandra nunca quis perguntar ao pai "mataste alguém?". "Há certas coisas que preferimos não ouvir. São nossos pais." Alexandra sabe que ele voltou "perturbado com algo que viu, que fez, que teve que fazer". A única vez que o viu chorar foi com uma imagem na televisão, "de um bebé guineense deitado junto a uma cabana". "Ele chorou, chorou." Ela nunca quis saber porquê. "A pós-memória envolve imaginação, reconstrução", explica Margarida Calafate Ribeiro.
O pai morreu de cancro do pulmão em 2002 e Alexandra herdou fotografias e uma condecoração, uma cruz de guerra que, explicou-lhe um amigo do pai, era só para "heróis". Quando uma vez falou disso ao pai ele só respondeu "pois, pois". Depois da sua morte foi encontrar a distinção por actos heróicos abandonada num saco plástico dentro de uma terrina decorativa. Era uma condecoração que ele queria esquecer, lembra Alexandra.
Bem sabe que é daqueles desejos que não servem para grande coisa, mas Alexandra gostava de ter conhecido o pai antes de ela própria ter nascido, em 1973, quando se dizia que era "alegre e brincalhão". Foi bom ver tanta gente no funeral, uma multidão. Foi a confirmação de que o pai era bom, devia ser bom, se ele fosse mesmo mau era sempre mau e não tinha amigos, não é? É assim que Alexandra dá sentido à vida que viveu com o pai que conheceu. "A pessoa que eu conheci tinha tatuagens dos fuzileiros, tinha um pavio curtíssimo, quando explodia era incontrolável e agressivo."
A equipa do Centro de Estudos Sociais não se quis ficar pelos filhos dos ex-combatentes e colocou também sob a identidade de filhos da guerra descendentes de homens dessa geração que não combateram na guerra colonial, o que incluiu filhos de homens que desertaram por opção política. "A maioria dessa geração divide-se entre os que foram à guerra e os que não foram. Era uma linha de corte que há 20 anos era decisiva, agora é mais esbatida", nota Margarida Calafate Ribeiro.
Como num filme
Se a vida de Pedro Branco, de 45 anos, fosse um filme os primeiros nove anos seriam falados em francês. O pai, o cantor José Mário Branco, teria uns 20 anos quando ficou apurado para o serviço militar. Fugiu para França e escapou à guerra colonial. A mãe, na altura com 17 anos, foi atrás dele. Pedro nasceu já em Paris, uma cidade onde voltou com 30 anos e à qual sentiu "uma ligação que não consigo explicar".
A sua vida começou em Paris por causa de uma guerra de que nunca ouviu falar, de que não tem imagens. "Para mim a guerra não existia." Por causa da ditadura que esteve na origem do conflito, Portugal foi para o Pedro criança um país onde só viviam os avós e que visitava sozinho porque os pais não podiam ir. Tem memórias dele próprio pequenino acompanhado por hospedeiras que lhe davam presentes. Quando tinha nove anos, dois meses depois do 25 de Abril, lembra-se de a família fazer a primeira viagem, num Citroën dois cavalos, e, depois de uma curva, lhe dizerem "ali é Portugal". "Era a primeira vez que vínhamos todos juntos."
Pedro tem quatro filhos, é professor do primeiro ciclo e reconhece que "sabe-se mais sobre o 25 de Abril do que sobre a guerra". Sabe que fugir, desertar, para muitos dos que lá combateram não é bem visto, mas afirma que "desertar pode ser um acto heróico" e é assim que entende a decisão do pai. Pedro Branco fala "nos que tiveram a coragem de não ir". Não sabe o que faria se ele próprio tivesse que escolher.
Durante a pesquisa do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e o Ministério da Defesa, foram entrevistados 232 filhos da guerra, entre filhos de ex-combatentes que voltaram sem mazelas psicológicas, filhos de pais com stress pós-traumático e filhos de pais que não combateram. "Demos sentido às memórias e apresentámo-los a uma identidade que desconheciam, a de filhos da guerra", conta Margarida Calafate Ribeiro.
Mas no início da recolha destas "pós-memórias" aconteceu o inesperado: quando iam para falar com os filhos, os pais sentiam aquela atenção como estranha, como quem diz - e às vezes diziam mesmo - "Então eu estive na guerra e vocês vêm falar com ele? Ele não sabe nada". Uma pequena equipa de investigadores viu-se assim em mãos com o trabalho a fazer com os filhos a multiplicar pelos pais (entrevistaram 103) e pelas mães (95). Há toda uma geração de ex-combatentes que ainda sente que não foi ouvida, nota a investigadora. "A guerra colonial ainda está mais no domínio privado do que no público."
In "
https://www.publico.pt/2011/03/21/jornal/os-filhos-dos--excombatentes-tambem-tem-memorias-da-guerra-21590299 "