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domingo, 5 de junho de 2022

Madrinhas de Guerra - 3 - O amor é mais forte que a guerra



Amores e desamores

Com este livro, Marta deu também voz às mulheres que são a parte quase sempre ignorada desta história - as que aceitavam o repto e "apadrinhavam" um soldado. Calcula-se que, no total, tenham existido cerca de 300 mil madrinhas, todas com mais de 21 anos (quando, à época, se atingia a maioridade), mas com uma grande diversidade de origens sociais, desde as raparigas que serviam, como criadas, em casas alheias às estudantes do ensino superior.
Entre as jovens de cá e os jovens que estavam lá há troca de confidências, de fotografias, pequenos presentes. "Às vezes são apenas lufadas de ar fresco num dia-a-dia terrível, mas também surgiram grandes amizades e muitos namoros", diz a autora. Vários dos homens com quem falou evocaram o momento da chegada do correio, a sensação experimentada ao ouvirem o seu nome, a intimidade da leitura. "Amor, tão longe tu estás", como na canção Saudade, dos Heróis do Mar.
Muitos desses namoros epistolares não passaram do papel, perdidos no "redemoinho da cidade civil" (na frase de António Lobo Antunes, em Os Cus de Judas, um dos livros que o escritor dedicou ao tema da Guerra Colonial): uns por desencontros vários, outros porque, como afirma Marta Martins Silva, havia em "muitos destes soldados o medo de sofrerem um ferimento que levasse à amputação, tornando-os, numa expressão muito comum entre eles, menos homens. Em muitos deles, esse medo adquiria tanta força que os levava a desistir de qualquer compromisso a médio prazo e interrompiam a correspondência".
Este é, pois, o livro que regista a transformação destes homens num outro, diverso do que partia. Como escreve Carlos Matos Gomes no prefácio ao livro: "[...] Todo o português feito soldado sentiu que quebrava uma ligação ao que lhe era matricial à sua terra, à sua família, à sua comunidade, aos seus projetos de vida. Morria, porque o arrancavam do seu meio e o transplantavam para outro, desconhecido. Quem permanecia na metrópole, em certa medida, também o assumia como morto. Ele nunca regressará como o conheceram. Será outro."
Para Matos Gomes, estas cartas, às vezes de uma grande candura proporcionada pela inexperiência de muitos daqueles jovens, revela ainda o seu desalento, fatal para os objetivos do regime: "A correspondência trocada entre os militares portugueses e as suas madrinhas de guerra revela que aquela não era uma guerra que pudesse ser ganha por aqueles soldados. As primeiras cartas falam de um cumprimento de um dever, de um tributo a pagar, mas logo de seguida do regresso, do vazio da missão que cumprem. Não se vislumbra nenhum sentimento de orgulho por estarem os militares mobilizados a contribuir para uma vitória ou uma grande causa."
Na sua deambulação, Marta encontrou também histórias com final feliz: as dos soldados que voltaram sãos e salvos e se casaram com as autoras das cartas que lhes tinham suavizado a provação. Muitos deles assim continuam e partilharam com a autora a história dos seus amores: "Muitos dos casais vasculharam as casas em busca de recordações trocadas naquele tempo - e deixaram-se tomar pela emoção ao reencontrá-las -, outros sabiam exatamente onde as encontrar porque nunca as quiseram perder de vista. Houve também quem tivesse ficado sem nada em mudanças sucessivas, memórias perdidas em baús poeirentos que foram ficando para trás, ou a dada altura perdido a vontade de reviver o Ultramar [...]."
Meio século passado, o que permanece intacto na memória de todos é o sobressalto causado pela chegada do correio. E aquelas palavras que, num instante, venciam o medo, a distância, a proximidade do inimigo. Amor, tão longe tu estás.

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