Guerra Colonial Portuguesa
8A forma como os ex-combatentes falam e escrevem acerca da sua experiência de guerra no “Ultramar” é extremamente variável, indo de uma postura mais distanciada a uma posição mais vivida, de um tom pícaro e quase anedótico a um mais dramático e sofrido, de uma posição de explicação e enquadramento histórico e social a um registo puramente individualista e autocentrado.4 A própria experiência de guerra variou muito consoante o ano e o local onde o serviço militar foi prestado, sendo radicalmente diferente de região para região e de função para função.5 Por tudo isto, e tal já foi dito mil vezes, a Guerra Colonial Portuguesa não foi uma mas muitas guerras, porventura tantas quantas os militares envolvidos.
9Há, no entanto, traços comuns ao conjunto dos testemunhos. Por exemplo, embora a guerra tenha terminado há mais de 40 ou 50 anos, a grande maioria dos entrevistados fala dela e de episódios lá vividos como se tudo se tivesse passado muito recentemente. Outros falam como se para eles a guerra nunca tivesse acabado (Loja 2013 [2002]; Janeiro 2012; Bastos 2008). Em muitos textos, perpassa uma vincada necessidade de acertar contas com o passado, de impedir que o vivido caia no esquecimento, de deixar escritos para memória futura e de homenagear os companheiros de luta, nomeadamente aqueles que morreram em combate. Também a ideia de que a experiência de guerra transforma e faz amadurecer os jovens à força é recorrente (Niza 2012; Ganhão 2007; Monteiro 2001).
10Feito um esforço para identificar os principais eixos de análise, emergem três ideias-chave, relevantes na medida em que ajudam a contextualizar, enquadrar e explicar o uso de substâncias psicoativas naquele contexto específico.6 Nos testemunhos dos ex-combatentes, tanto explícita como implicitamente, a Guerra Colonial Portuguesa tende a ser apresentada como: (a) um tempo de experimentação e de contacto com novas realidades; (b) uma experiência feita de grande tensão e estados de ansiedade constante; (c) um contexto de pouca preparação militar, alguma indisciplina e formas de contestação.
11Para a grande maioria dos militares que nela participaram, oriundos da “Metrópole”, a guerra em África foi, em muitos sentidos, um mundo admiravelmente novo. Excluindo o caso dos militares que foram recrutados localmente – “colonos” e “nativos”, para usar as expressões da altura 7 –, tudo se passou num continente estranho, profundamente diferente do que a generalidade dos soldados portugueses conhecia: os cheiros, os sabores e os sons, a fauna e a flora, a escala e a dimensão, o clima, a paisagem e as cores, etc., tudo era novidade e muito foi vivido, sentido ou experimentado ali pela primeira vez (V. Santos 2013; Ferreira 2011; Oeiras 2009; A. L. Antunes 2005). Para mais, muitos dos militares portugueses que participaram na Guerra Colonial Portuguesa – de baixa patente, sobretudo – são apresentados como muito novos, pouco viajados, com baixas habilitações literárias e oriundos de um Portugal rural (M. J. L. Antunes 2015; Oeiras 2009), constituindo o serviço militar a sua primeira vivência fora da casa dos pais. Nesse sentido, o período de guerra, enquanto incursão num mundo “exótico”, constituiu um óbvio corte com o quotidiano, uma pausa no percurso de vida (M. J. L. Antunes 2015; Niza 2012; Vardasca 2012).8 Como se verá, para alguns, entre as novas experiências tidas na guerra constam a ingestão de determinadas comidas e bebidas,9 mas também o uso de substâncias psicoativas lícitas (como bebidas alcoólicas específicas, destiladas ou de fabrico artesanal local, por exemplo, resultando por vezes na primeira experiência de um estado de embriaguez) e ilícitas (como a canábis) (Ferreira 2011).
12Invariavelmente, fruto da própria natureza do conflito, a Guerra Colonial Portuguesa é descrita como uma experiência de desgaste, dura e difícil de suportar, tanto do ponto de vista físico e das condições materiais como do ponto de vista mental e psicológico. Enfrentar um movimento de guerrilha implica combater um inimigo que na maior parte das vezes não se vê e se esconde, que ataca quando não se espera e contra o qual há que estar sempre à defesa. Como refere Luís Oeiras, que participou neste conflito como alferes em Moçambique, “um combate de guerrilha é como um terramoto. Pode estoirar em qualquer altura, mas não se pode viver à espera debaixo de uma mesa” (2009: 39).
13Aliás, para a generalidade da tropa convencional,10 tratou-se de uma guerra defensiva, procurando evitar emboscadas e ataques de minas, com poucas incursões ofensivas (e que muitas vezes não chegavam a resultar em confrontos). Por outro lado, os testemunhos estão cheios de referências a tempos mortos, de ócio e de inatividade, passíveis, no entanto, de serem interrompidos a qualquer instante por um ataque inimigo. Segundo Manuel Bastos, que esteve como alferes em Moçambique, “a vida de um soldado é feita de longos períodos de tédio, que alternam com curtos períodos de terror […] porém nestes períodos de tédio é que verdadeiramente nos visita o medo, quando a adrenalina está baixa e a fantasia mais volátil que o fumo do cigarro” (2008: 169).
14Recorrentemente é descrito um ambiente sufocante e concentracionário (M. J. L. Antunes 2015; A. L. Antunes 2005), marcado pelo isolamento, pelo stress e muita ansiedade, mesmo por quem viveu a guerra em regiões de menor atividade militar do inimigo (Sousa 2007; Lopes 1998).11 Era o inimigo quem conhecia e dominava o terreno, daí tirando óbvio benefício: de alguma forma, as tropas portuguesas eram em África um corpo estranho. Por tudo isto, os testemunhos incluem constantes referências a problemas mentais e episódios de descompensação, descritos pelos próprios ou relatados por terceiros, tipificados na figura do “cacimbado” (Janeiro 2012; Bastos 2008).12 De uma forma genérica, a saúde mental dos ex-combatentes das forças armadas presentes na Guerra Colonial Portuguesa degradava-se visivelmente à medida que o tempo de comissão ia passando (Loja 2013 [2002]; Aguiar 2007), atingindo o ponto mínimo de sanidade (se é que tal pode ser medido) na altura da rendição, para espanto e choque das tropas acabadas de chegar à frente de combate (M. J. L. Antunes 2015; Janeiro 2012; Mata 2012; Pereira 2011).
15Por último, perpassa nos testemunhos uma sensação de que os militares envolvidos na Guerra Colonial Portuguesa se sentiam “carne para canhão”, manifestando amiúde uma certa antipatia e desdém em relação aos comandantes e, sobretudo, às chefias de topo e aos “senhores da guerra”, tidos como os responsáveis pela dura situação que se sentiam obrigados a enfrentar (Loja 2013 [2002]; Aguiar 2007; A. L. Antunes 2005). Em alguns casos, tal pareceu resultar num afrouxar da disciplina militar e em atos de desobediência e outros que colidiam com as regras de conduta militar. Por outro lado, para os ex-combatentes, o conceito de “camaradagem” (T. M. Silva 2007) foi, em certo sentido, mais relevante do que os de “pátria” ou “dever patriótico” (Sá 2009) – o dever sentido era sobretudo para com os camaradas de armas. A nível pessoal, portanto, o propósito último da guerra travada parece não ter sido lutar pela pátria mas, pura e simplesmente, sobreviver e chegar ao fim da comissão vivo, são e inteiro. Como tal, muitos ex-combatentes declaram ter feito a guerra com pouca convicção – mesmo aqueles que se ofereceram como voluntários –, daí derivando, mais uma vez, uma série de pequenos e grandes atos de indisciplina e fabrico de regras próprias. Para mais, perpassa também nos testemunhos um claro sentimento de impreparação militar e operacional (Lopes 1998), aliado a uma carência no que toca aos meios materiais disponíveis e às fracas condições de vida na maior parte dos quartéis – em particular naqueles localizados em zonas mais remotas –, o que contribuiu para desvincular os militares de causas ideológicas (V. Santos 2013; Mata 2012; Vardasca 2012) e favoreceu formas de contestação (como o Cancioneiro do Niassa, por exemplo).13
16É tendo este cenário como pano de fundo que os ex-militares entrevistados enquadram e contextualizam um conjunto de práticas e “vícios” 14 que tiveram lugar na Guerra Colonial Portuguesa: jogo, indisciplina, violência, atrocidades, prostituição, homossexualidade e também uso e abuso de substâncias psicoativas (Alexandre 2015; Martins 2003). Uns são descritos como transversais e generalizados, outros como interditos, alguns foram alvo de censura social, outros foram praticados sobretudo longe dos olhares públicos, mas todos são hoje explicados à luz da natureza do conflito militar e dos seus condicionantes.
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