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segunda-feira, 3 de junho de 2019

Guerra Colonial - drogas II

Usos de álcool e outras drogas

  • 15 Como refere Luís Oeiras, no seu livro de memórias Mueda-Lua, a história política e social da Guerra (...)
17A Guerra Colonial Portuguesa é também feita de sombras e silêncios (Roque 2004), onde cabem os usos de álcool e outras drogas. Na sua historiografia oficial (J. F. Antunes 1995; Garcia 2010; Teixeira 2001; Afonso e Gomes 2000), o consumo de bebidas alcoólicas geralmente não merece mais do que uma nota de rodapé, enquanto o uso de drogas ilícitas é completamente ignorado, omitido ou considerado irrelevante.15 No entanto, na história oficiosa – isto é, aquela que se faz de depoimentos e registos (auto)biográficos, necessariamente parciais e nem sempre objetivos –, o uso de substâncias psicoativas tem um outro relevo: às bebidas alcoólicas é atribuído um papel central na vida quotidiana dos militares das forças armadas portuguesas envolvidos na Guerra Colonial, enquanto é possível encontrar nos testemunhos referências – ainda que muito mais veladas e esporádicas, é certo – ao uso de canábis, na forma de erva fumável, conhecida como liamba em Angola e suruma em Moçambique, tanto por parte da população africana como por parte das tropas portuguesas.
  • 16 Na Guerra Colonial Portuguesa, de acordo com os testemunhos, a regra de não haver consumo de bebida (...)
18De acordo com os relatos, pode dizer-se que indiscutivelmente o álcool foi a substância psicoativa mais usada na Guerra Colonial Portuguesa, seguindo-se o tabaco e só depois todas as outras, a larga distância. De facto, dificilmente um ex-combatente da Guerra Colonial Portuguesa parece ser capaz de falar da sua vivência de guerra sem fazer menção às bebidas alcoólicas, com destaque para a cerveja, tal era a sua importância no dia-a-dia dos militares portugueses em África. Exceto em saídas operacionais para o “mato”, o álcool era uma presença constante, tanto em ocasiões especiais como no mais banal dos dias.16
19Segundo os ex-combatentes, no que à Guerra Colonial Portuguesa diz respeito, para muitos a ingestão maciça de bebidas alcoólicas começou cedo, logo a bordo dos navios que transportavam as tropas portuguesas até aos territórios africanos (Alexandre 2015; Ferreira 2011; Oeiras 2009; Roque 2004). Para mais, tanto no meio do oceano como, mais tarde, em boa parte dos aquartelamentos africanos, a água era um bem escasso e tendencialmente de má qualidade, o que, juntamente com o clima abrasador, favorecia o consumo de bebidas alcoólicas, normalmente ingeridas frescas ou geladas.
  • 17 A regra geral era que os quartéis portugueses em África tivessem espaços diferentes para praças e g (...)
20Como já referido, entre as diferentes bebidas alcoólicas consumidas durante o conflito, destaca-se a cerveja. De caráter transversal, pode considerar-se a bebida emblemática da Guerra Colonial Portuguesa: consumida pela ­maioria dos militares, independentemente da ocasião, da hora do dia, da função ou da patente militar. Vendidas mais caras, bebidas destiladas, como whiskygin, aguardente e outras, eram consumidas sobretudo por militares graduados, que, na sua condição de oficiais e sargentos, tinham direito a comprar e / ou eram-lhes oferecidas determinadas bebidas destiladas por mês. Embora não lhes fossem vedadas, as bebidas destiladas eram muito menos consumidas por militares não graduados, por serem vendidas mais caras do que a cerveja. O preço limitava assim o acesso a este tipo de bebidas alcoólicas e impunha uma clara barreira hierárquica.17 Ao contrário da cerveja, que era em geral de produção local, as bebidas destiladas e o vinho iam de Portugal continental.
21A importância do álcool para as tropas era reconhecida tanto por soldados como pelas chefias militares. De facto, tal como os géneros alimentares, as munições ou a correspondência, as bebidas alcoólicas faziam parte da logística militar e, por conseguinte, nunca faltavam nos quartéis portugueses, por mais remota que fosse a sua localização, sob pena de perturbar a paz social e abalar o moral.
22José Niza, que, entre 1969 e 1971, esteve presente na Guerra Colonial Portuguesa como médico de uma companhia militar em Angola, conta no seu livro de memórias, Golden Gate (2012), como a decisão governamental de limitar o acesso às bebidas alcoólicas nos quartéis, em 1971, causou uma enorme revolta entre as tropas portuguesas em África, acabando por ser revertida apenas três semanas depois. Apelidando a decisão de inoportuna e até cruel num aerograma escrito por alturas dessa decisão política, o médico revela bem como o consumo de álcool, mesmo se excessivo, era entendido pelos oficiais como algo que cumpria um importante papel social, nomeadamente uma forma de escape e alívio, pelo que limitar o seu uso causaria mais mal do que bem.
“Outro problema que cá temos é o das quantidades astronómicas de cerveja que estes tipos bebem. Uma loucura! Muitos deles, quando chegam à cantina, em vez de pedirem uma cerveja, pedem meia grade! […] O seu tranquilizante é o álcool, é com ele que se sentem mais animados, é ele que lhes tira do pensamento os problemas […]. Devo tirar-lhes a bebida? Devo tirar-lhes o biberão, a eles, que na realidade são crianças ingénuas e ignorantes a quem disseram que eram homens, a quem deram uma espingarda, a quem lançaram para uma guerra onde muitos vão ficar? Devo tirar-lhes a única coisa que para além do correio os mantém vivos?” (Niza 2012: 46-47).
  • 18 A pergunta era colocada antes de no questionário se falar de álcool e drogas, pretendendo-se, assim (...)
23Para confirmar esta relação entre o álcool e o alívio emocional durante a Guerra Colonial Portuguesa, incluiu-se uma pergunta aberta no questionário online aplicado junto de ex-combatentes: “No caso de ter sentido stressdurante a guerra em África, na altura como lidava com isso? O que fazia para se libertar da pressão?” 18 Sem surpresa, muitos ex-militares declararam que o consumo de bebidas alcoólicas era uma das principais formas de lidar com a pressão e a ansiedade (que a grande maioria reconhece ter sentido), sendo mesmo para alguns a mais importante. Assim, juntamente com o convívio, a música, a prática de desporto e, no caso de militares mais graduados, a escrita e a leitura, o consumo de bebidas alcoólicas destaca-se como um importante aliviador de tensão emocional. Eis algumas respostas à pergunta colocada no questionário online em novembro de 2015:
  • “Passei por vários períodos de grande stress, nomeadamente os dois meses de espera por substituto depois de cumprir os dois anos de comissão. Lembro-me que a minha libertação era o álcool”.
  • “Procurávamos no tempo livre abster-nos de tudo o que nos envolvia: copos, música, grandes amizades e muita confiança entre as chefias”.
  • “Fingia que não havia stress. Copos, cartas, bola e convívio com os camaradas”.
  • “Nas alturas de maior pressão bebia”.
  • “Bebia até à inconsciência”.
  • “Embebedava-me”.
  • “Bebia muitíssimo”.
  • “Bebia para dormir”.
  • “Farra e cerveja”.
  • “Álcool e tabaco com força”.
  • “Fumava e bebia whisky e cerveja”.
  • “Bebia e jogava”.
  • Whisky e poker”.
  • Whisky, bridge y putas”.
  • “Procurava abstrair-me, distraindo-me com amigos e bebendo”.
  • “Lia, bebia e tocava guitarra”.
  • “Saía para caçar e muito álcool”.
  • “Dava-lhe com uns bioxenes [calão para o whisky]”.
  • “A camaradagem era muito grande e por isso se alguém estivesse em baixo havia sempre um amigo. Além disso havia muito whisky…”
24Não é por acaso, então, que a cantina, o bar dos soldados e a messe de oficiais e sargentos eram locais de grande importância simbólica em qualquer quartel ou base militar da Guerra Colonial Portuguesa, servindo mais do que como mero ponto de aquisição de bebidas alcoólicas.
  • 19 António Lobo Antunes, que entre 1971 e 1972, esteve presente na Guerra Colonial Portuguesa como méd (...)
25Nos quartéis as bebidas alcoólicas eram vendidas mais baratas – para uso exclusivo das forças armadas portuguesas –, o que, intencionalmente ou não, favorecia e incentivava o consumo de álcool.19 Não obstante o seu baixo preço, era na aquisição de bebidas alcoólicas que grande parte dos militares gastava uma importante fatia do dinheiro que lhe era entregue mensalmente (“pré”), o que revela bem o nível de consumo de álcool na Guerra Colonial Portuguesa.
  • 20 Por exemplo, os entrevistados tendem a associar o alcoolismo sobretudo a casos em que o consumo exc (...)
26Embora retrospetivamente o nível geral de consumo de bebidas alcoólicas seja hoje consensualmente considerado elevado pelos ex-combatentes, só em casos raros e extremos estes falam de alcoolismo.20 Mesmo se visto como “exagerado”, o uso de bebidas alcoólicas tende a não ser visto pelo prisma da patologia e da ordem biomédica, sendo considerado normal e justificado, quase nunca condenado ou denegrido, na medida em que, como se viu, os militares da Guerra Colonial Portuguesa lhe atribuem um papel terapêutico: nas condições descritas, o álcool servia de equilibrador emocional e nesse sentido era tido como indispensável à boa saúde mental. É, por exemplo, a opinião de Alcino Ferreira, que esteve como furriel em Moçambique, e de José Leão (pseudónimo), que esteve em Angola como cabo enfermeiro, e que resumem muito do que atrás foi dito acerca do álcool:
“Bebia-se muito, no meu pensar, devido a diversas situações: à alta pressão passada em zonas de combate, a não se saber se haveria um amanhã, à solidão, à questão de o tempo de ócio ser muito, aos quase sempre pensamentos terríveis e inoportunos que teimavam em não nos largar, aos custos nulos e aos proveitos mais do que suficientes, tudo isso proporcionava a vadiagem e estroinice…!” (Ferreira 2011: 128)
“Normalmente havia sempre uma razão não específica para se beber, bebia-se por camaradagem, por convivência, e porque o próprio clima convidava a fazê-lo, poderia haver num ou noutro razões de ordem psicológica, de saudade da família, que nem sempre eram exteriorizadas. Bebia-se para comemorar o regresso de uma operação no mato, em que tudo tinha corrido pelo melhor, ou seja, sem mortos nem feridos, bebia-se porque se ia para uma ação no mato, e não se sabia quem, ou se se iria voltar, bebia-se porque poderia ser a última, bebia-se porque alguém fazia anos, ou porque alguém pagava umas rodadas, enfim, bebia-se porque estar vivo, por si só, já era um motivo” [entrevista eletrónica, 26 / 3 / 2015].
27Por outro lado, muitas vezes os testemunhos dão conta de que o álcool era um dos principais fatores que contribuíam para desencadear episódios de descompensação emocional (descritos como recorrentes), além de potenciar condutas irresponsáveis ou consideradas incorretas e de estar igualmente associado a muitos dos acidentes, nalguns casos com desfechos fatais (nomeadamente em episódios trágicos com armas de fogo). Essa vertente das bebidas alcoólicas tende, no entanto, a ser claramente desvalorizada ou, pelo menos, a ser secundarizada face à utilidade das mesmas num contexto como o da Guerra Colonial Portuguesa.
28Em relação às drogas ilícitas, o conhecimento acerca do seu uso durante o conflito é bastante mais escasso, impreciso e menos bem documentado, o que levou a que se recorresse essencialmente a testemunhos orais. Com base num intenso trabalho de triangulação de informação dispersa, é possível confirmar o seu uso na Guerra Colonial Portuguesa, mas não tanto o seu significado e a sua história social.
  • 21 Em contrapartida, alguns ex-combatentes que estiveram na Guiné durante a Guerra Colonial Portuguesa (...)
29Não obstante todas as lacunas de informação, parece indiscutível que a canábis foi a substância psicoativa ilícita mais consumida neste conflito militar, nomeadamente em Angola e em Moçambique, países onde, ao contrário da Guiné, o consumo da planta era então uma prática antiga instituída junto de parte da população (Valentim 2012; Silva 2003; Fabian 2000; Toit 1976).21
30Infelizmente, a produção antropológica e o saber etnográfico acumulado acerca dos povos de Angola, Guiné e Moçambique nunca deram muita atenção ao uso de substâncias psicoativas lícitas e, muito menos, ilícitas. Sobre a canábis e outras drogas que não o álcool na África portuguesa, é possível encontrar apenas referências dispersas e geralmente laterais (Carvalho 1898; Welwitsch 1862), as mais antigas das quais remontam ao período dos missionários, como o frade João dos Santos (1999 [1609]), no século XVII, e dos exploradores de África, como Paiva Couceiro (1892), Capelo e Ivens (2010 [1881]) e outros (Rosa e Verde 2013; Heintze 2010 [1999]), no século XIX.
31Uma coisa é certa: as tropas portuguesas bebiam o álcool que era disponibilizado pela intendência militar, mas fumavam as drogas que encontravam por si próprias, tendo desenvolvido com a liamba e a suruma uma relação que nunca estabeleceram com as bebidas alcoólicas tradicionais africanas, de fabrico artesanal. De uma forma geral, foi algo com que se depararam, não um bem que trouxessem consigo, que já conhecessem ou que procurassem ativamente. Aliás, tendencialmente os militares envolvidos na Guerra Colonial Portuguesa – como a maior parte dos jovens portugueses seus contemporâneos, de resto – não tinham um conhecimento prévio acerca das drogas em geral, e dos efeitos psicoativos da canábis em particular, conhecimento que era em geral muito escasso e difuso. Neste sentido, o consumo de canábis foi uma das novas e não antecipadas experiências por que passaram alguns ex-combatentes em terras africanas.
  • 22 Entre estas personagens-chave destacavam-se os soldados de incorporação local que serviam no exérci (...)
  • 23 Tudo indica que, pelo contrário, em pontos nevrálgicos e de confluência dos militares – como a cida (...)
32Tudo indica que o conhecimento acerca da canábis e, consequentemente, o seu uso tenham aumentado com o desenrolar da própria guerra (Ribeiro 1999), dependendo da região, do tipo de tropa e até da unidade militar, beneficiando da crescente “africanização” do contingente militar. Nesse sentido, o consumo de canábis pode ser visto como um processo de aprendizagem que dependia de personagens-chave com ligações às populações locais (que depois introduziriam o uso da planta no seu círculo de relações).22 Não é por acaso que os militares portugueses colocados em quartéis situados em zonas muito remotas, sem aldeamentos nas imediações, tendem a não ter tido contacto com esta substância.23 De acordo com os testemunhos, a canábis que circulava por entre os militares portugueses provinha das populações africanas, sendo comprada, trocada, recolhida ou até roubada nos aldeamentos próximos dos quartéis portugueses (Janeiro 2012), ou então capturada ao inimigo (Marta 2000).
33Rui Martins (pseudónimo), que esteve em Moçambique como alferes entre 1971 e 1974, refere os esquemas de circulação da canábis por entre as tropas portuguesas e como então se estava longe do conceito de “tráfico de droga”:
“A mim davam-me. Eram os africanos que tinham esse conhecimento. Por vezes achavam aquilo uma coisa natural, era como dar tremoços para a cerveja, outras vezes vendiam por valores irrisórios. Os preços eram muito baratos. Na maior parte das vezes davam. […] E portanto as pessoas fumavam, era barato, muitas vezes não custava nada, havia pessoas que sabiam ir ao campo buscar a marijuana como cá são capazes de ir buscar papoilas” [entrevista presencial, 31 / 1 / 2015].
34Ao contrário do que se passa com as bebidas alcoólicas, a grande maioria dos testemunhos publicados não faz a mínima menção ao uso de canábis. Alguns registos biográficos fazem menção ao uso de liamba e suruma durante a guerra mas não lhe dedicam atenção (Vardasca 2012; A. L. Antunes 2005), ou então referem-nas de forma lateral (Janeiro 2012; Marta 2000) ou condenatória, criando distância (Ferreira 2011; Aranha 2005; Martins 2003). Também a recolha de informação no ciberespaço permitiu encontrar referências ao uso de canábis por parte das tropas portuguesas, embora estas sejam raras e muitas vezes indiretas: tendencialmente o tema não é abordado diretamente mas através de metáforas, muitas vezes num tom irónico e com recurso a duplos sentidos.
35No entanto, quando se pergunta por esta planta a ex-combatentes, uma boa parte tem algo a dizer sobre o assunto, seja porque consumiu ou assistiu ao seu consumo, seja porque tem notícia por terceiros do seu uso na Guerra Colonial Portuguesa. Não é, de todo, um assunto totalmente desconhecido, ainda que geralmente não seja falado. De facto, a maior parte dos entrevistados no âmbito da presente investigação teve contacto direto ou ouviu falar do uso da planta durante o conflito.
36O inquérito online incluiu duas perguntas abertas com o propósito de confirmar o uso de canábis na Guerra Colonial Portuguesa: uma questionava o conhecimento do fenómeno (“Como descreveria o consumo de marijuana / liamba / suruma durante a guerra em África por parte das tropas portuguesas?”), outra o contacto direto com a planta (“Consumiu marijuana / liamba / suruma durante a guerra em África?”).
37A análise das respostas permite chegar a duas conclusões: a ausência de consumo de canábis por parte das tropas portuguesas na Guiné e um consumo relevante em Angola e Moçambique. De entre os 210 respondentes, todos aqueles que estiveram na Guiné afirmam não ter consumido a planta e desconhecer por completo o seu uso no território durante a guerra. O mesmo não se passa com os respondentes que estiveram em Angola e Moçambique: 15% dos militares que fizeram a guerra naqueles territórios afirmam ter consumido canábis, enquanto outros 25% afirmam ter assistido ao consumo ou tido conhecimento direto disso. Feitas as contas, dos respondentes que estiveram em Angola e Moçambique durante a Guerra Colonial Portuguesa, perto de metade (40%) declaram ter tido um contacto direto com a planta.
38Mas se é facilmente comprovável o consumo de canábis (e até, de alguma forma, possível estimar a dimensão do fenómeno) entre as tropas portuguesas que estiveram na Guerra Colonial, mais difícil é perceber o seu significado e fazer a sua história social. Em geral, o tom com que os entrevistados falam acerca do uso pessoal de canábis revela desconforto e vontade de evitar ou, pelo menos, desvalorizar a questão, tornando claro que este é um assunto incómodo, acerca do qual se dizem sobretudo coisas genéricas e não pessoais, o que está certamente relacionado com o seu caráter ilícito. Tal dificulta a investigação, mas ao mesmo tempo revela que as drogas não podem ser postas à parte do contexto social e que o discurso sobre elas é condicionado histórica e socialmente. De tão presente e recorrente, este silêncio adquiriu uma importância central, levantando questões.
39A tónica dos discursos é colocada no desconhecimento, como se de alguma forma atenuasse ou desculpasse uma prática que é hoje vista como ilícita: todos os ex-combatentes entrevistados, tanto presencialmente como por via eletrónica, declaram que, à data, não estavam informados acerca das drogas e que não havia uma clara perceção de que o uso de canábis era algo proibido. Como já referido no início, a noção de “droga” enquanto problema social (­Fernandes 2009) emerge no mundo ocidental ao mesmo tempo que decorre a Guerra Colonial Portuguesa. No entanto, no Portugal dos anos 60 e meados de 70 do século XX, o conhecimento sobre as drogas e o contacto com as substâncias proibidas eram invulgares e estavam limitados principalmente a uma pequena fatia da população, constituída essencialmente por jovens urbanos das grandes cidades (Costa 2007; Dias 2007; Ribeiro 1995), pelo que o conceito era algo mais abstrato do que concreto, não algo palpável e bem definido.
  • 24 Assistiu-se à mesma resistência em abordar certos temas e ao traçar da “fronteira que separa o que (...)
40Do pouco que os seus consumidores estão dispostos a falar,24 pode dizer-se que a canábis era usada na guerra de África como uma forma de ajudar a relaxar, “espantar o medo”, aliviar a ansiedade e escapar à angústia (Vardasca 2010) – que naquele contexto, de acordo com os testemunhos, assumiam uma dimensão colossal. Normalmente em associação com as bebidas alcoólicas, o consumo de canábis tanto podia ser feito em pequenos grupos como de forma isolada. Tendia a ser discreto mas não se tratava de algo propriamente secreto e / ou algo que, por si só, desse origem a castigos disciplinares.
41Luís Leal (pseudónimo), que esteve como soldado condutor em ­Moçambique entre 1971 e 1973, destaca-se como informante privilegiado, por falar abertamente acerca do uso pessoal de canábis na guerra, que define como recorrente enquanto esteve em zona operacional:
“Eh pá, a gente fumava aquilo. Pá, a gente ia para uma operação e parecia que íamos para um baile. Uma despreocupação total. Quer dizer, aquele medo, coiso e tal, não. Claro que não íamos para o mato a rir, não é, nem a dançar. Mas íamos tão despreocupados que aquilo parecia que nem estávamos em guerra. E a gente ia, fazíamos as operações. Eu fumei bastante. Bastante daquilo. Porque era um escape que eu tinha. Eu não podia viver sem aquilo lá. […] A gente queria é ir para o mato tranquilos, sem preocupações. E aquilo: ‘eh pá, tu vais para o mato e parece que não vais, esse medo todo sai, sai fora de ti, pá’, não sei quê” [entrevista presencial, 13 / 2 / 2015].
42Também Rui Martins, atrás já apresentado, descreve o consumo de canábis como generalizado em Moçambique e, mais do que isso, de alguma forma incentivado pelos pares e ignorado pelas chefias militares:
“Havia uma questão psicológica, como toda a gente fumava marijuana, havia a ideia que quem não fumasse marijuana era maricas, ou qualquer coisa. […] As chefias achavam que cada um fizesse o que quisesse. Não havia qualquer proibição, toda a gente sabia que toda a gente fumava a dita liamba – ou como chamava-se lá, suruma, a expressão que era usada em Moçambique. De tal maneira que se tornou uma adjetivação: ‘eh, pá, isso é só suruma’, quer dizer que um gajo estava a ficar parvo, pá. Mas ele estava a ficar parvo não era por isso, estava a ficar parvo porque estava farto da guerra [risos], não era por causa de fumar suruma” [entrevista presencial, 31 / 1 / 2015].
43Claro que, por cada informante que considera o consumo de liamba e suruma uma prática habitual na Guerra Colonial Portuguesa, nomeadamente em Angola e Moçambique, se encontram dois ou três que afirmam o contrário.
44Seja qual for a verdadeira dimensão do uso de canábis por parte das tropas portuguesas envolvidas no conflito, tudo indica que a grande maioria dos militares cessou os consumos aquando do regresso a casa, tal como se passou, aliás, no caso dos veteranos da Guerra do Vietname. Se bem que num processo mais complicado e demorado, segundo os próprios, também o consumo de bebidas alcoólicas foi igualmente sendo reduzido na generalidade dos casos, à medida que se foi procedendo ao reajuste face ao novo quotidiano e à passagem para a vida civil. Tal reforça a ideia de que o uso de substâncias psicoativas é algo que é intrinsecamente condicionado pelo contexto social e pelo conjunto de motivações e expetativas dos seus utilizadores.
45No seu livro de memórias da guerra, José Manuel Martins, que esteve como primeiro-cabo no norte de Angola, entre 1972 e 1973, resume muito do que foi dito atrás acerca da canábis:
“Na década de setenta do século passado, havia consumo de droga nos quartéis! Em Zau-Évua, alguns militares consumiam droga, fumavam, pelo menos, liamba. No âmbito fechado, onde o moral não era alto, o consumo constituía mais um meio de ‘evasão’, de resposta ao isolamento e à desmotivação. […] Não existiam intuitos de ‘tráfico’: quem tinha, tinha, e, por vezes, ‘facilitava’ aos interessados, que, mais tarde, faziam o mesmo. Não havia, embora possa admitir estar errado, consciência dos malefícios do consumo de droga; ao contrário, os consumidores achavam que o uso da liamba favorecia os relacionamentos, descomplexava e fazia esquecer as dificuldades do momento! Não se falava, é certo, de cocaína ou heroína nem dos horrores que o respetivo consumo implicava. Estávamos apenas no início da década de setenta, numa sociedade encerrada em si mesma, sem abertura ao exterior, onde apenas as ondas de rádio nos levavam para bem longe, embora sob todas as cautelas possíveis. Nas circunstâncias, o consumo de droga visava mais a ‘descontração’, o alívio da tensão em que se vivia. Não mais do que isso” (Martins 2003: 152).


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