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quarta-feira, 5 de junho de 2019

Guerra Colonial - drogas IIII



1 Neste artigo, para simplificar, “consumo” e “uso” são usados como sinónimos.

2 A Guerra Colonial Portuguesa é também chamada Guerra do Ultramar ou Guerra de Libertação Nacional, se vista por outros prismas. Menos frequentemente, é também designada como Guerra(s) de África.

3 A pesquisa assenta em entrevistas não dirigidas (Devillard, Mudanó e Pazos 2012; Kvale 2006; Rubio 2006) realizadas com ex-combatentes do exército português que prestaram serviço na Guerra Colonial Portuguesa e foi complementada com uma recolha bibliográfica extensiva, focada essencialmente num conjunto de biografias, histórias de vida e relatos biográficos centrados na experiência de guerra em África. Num segundo momento, porque tal se justificou, estendeu-se a pesquisa ao ciberespaço (Calado 2006, 2009, 2013) e aplicou-se um inquérito online a ex-combatentes. O conjunto de narrativas e textos analisados é composto pelas entrevistas realizadas propositadamente, pelos textos editados em livro, pelos textos publicados no espaço digital que foram recolhidos e pelas respostas às perguntas abertas do questionário online, daqui para a frente designadas genericamente “testemunhos”. Alguns dos argumentos apresentados resultam da troca de ideias com o meu colega Luís Vasconcelos e também com os professores Miguel Vale de Almeida, Brian O’Neill e, sobretudo, Francisco Oneto, a quem estou agradecido.

4 Quando aqui se fala de “ex-combatentes” ou, mais genericamente, de “militares”, está-se a incluir somente aqueles que participaram na Guerra Colonial Portuguesa incorporados nas forças armadas portuguesas e a excluir os membros dos movimentos independentistas africanos. Da mesma forma, quando se fala em “militares portugueses” está-se a incluir militares africanos que lutaram do lado das tropas portuguesas.

5 Não foi o mesmo ter estado numa região pacificada ou numa região militarmente ativa, haver tido funções operacionais e cumprido missões no “mato” ou ficado cingido apenas a funções administrativas e não ter saído do quartel, por exemplo.

6 “Drogas” e “substâncias psicoativas” são aqui usadas como sinónimos e incluem todas as substâncias que, depois de ingeridas, condicionam o sistema nervoso central (estimulantes, depressoras ou alucinogénias), atuando sobre o estado de consciência, o humor ou, mais genericamente, o funcionamento cerebral. Neste sentido, tanto o álcool como a canábis, as duas substâncias discutidas neste artigo, são substâncias psicoativas. Ao contrário do sistema jurídico-legal, que separa claramente as duas substâncias, acompanha-se os argumentos de Geoffrey Hunt e Judith Barker (2001) de crítica à tradição das ciências sociais, e da antropologia em particular, de autonomizar o estudo de álcool e drogas ilícitas, criando duas tradições académicas distintas.

7 O discurso hegemónico acerca da Guerra Colonial Portuguesa tende a secundarizar ou omitir a experiência e a perspetiva dos militares de incorporação local – isto é, aqueles nascidos ou que viviam nos territórios africanos –, cujo número nas forças armadas portuguesas foi aumentando à medida que ia progredindo o conflito militar (Gomes 2013).

8 Os militares portugueses viram-se imersos num mundo “exótico”, tanto do ponto de vista do mundo natural como do ponto de vista cultural, exprimindo nos seus registos biográficos espanto, fascínio e consciência das diferenças na natureza e na vida dos povos africanos.

9 Alguns militares, por exemplo, relatam a experiência de comer camarão cozido pela primeira vez (Oeiras 2009). Por outro lado, bebidas como a Coca-Cola ou a Pepsieram de venda proibida na “Metrópole”, mas de venda livre nas “colónias”. Por causa disso, conta Vítor Santos, que participou na Guerra Colonial Portuguesa, em Moçambique, enquanto sapador de minas, “coca-cola [era o] nome dado pelos militares da metrópole aos naturais de Lourenço Marques” (2013: 112).

10 Excluem-se as chamadas “tropas especiais” – comandos, fuzileiros, paraquedistas, entre outras – de natureza ofensiva e com missões operacionais específicas, maioritariamente de ataque.

11 A experiência de guerra inclui casos de militares que não chegaram a disparar um tiro e / ou não se depararam com o inimigo uma única vez. Neste sentido, ter “ido à guerra” é mais do que a vivência operacional e militar.

12 Manuel Bastos inicia assim o seu livro Cacimbados: A Vida por Um Fio: “Chamavam esgazeados aos ex-combatentes da Grande Guerra e cacimbados aos da Guerra Colonial Portuguesa, associando os seus traumas, no primeiro caso às bombas de gás e no segundo ao clima de África” (2008: 9). Também Maria José Lobo Antunes, na sua recente etnografia de uma companhia militar que esteve em Angola entre 1971 e 1972, aborda a figura do “cacimbado”, designando-a como “uma suave loucura” responsável por tornar os “militares capazes dos mais impensados disparates” (2015: 150).

13 O Cancioneiro do Niassa consiste num conjunto de adaptações de fados e canções em voga (de Bob Dylan a José Afonso), que, de forma humorística e sarcástica, abordam a temática da Guerra Colonial Portuguesa do ponto de vista do soldado e das condições de vida. As adaptações foram feitas por militares portugueses estacionados na região do Lago Niassa, em Moçambique, e tornaram-se rapidamente populares em muitos quartéis de outras regiões, servindo como uma forma de contestação à ordem estabelecida e, sobretudo, à cadeia de comando.

14 De forma provocatória, “vício” é aqui entendido num duplo sentido: como algo que é considerado adictivo e compulsivo e, simultaneamente, como algo que desafia a moral e pode ser visto como transgressão e / ou um desvio às normas morais.

15 Como refere Luís Oeiras, no seu livro de memórias Mueda-Lua, a história política e social da Guerra Colonial é extensa e exaustiva, mas a dos combatentes não (2009: 9).

16 Na Guerra Colonial Portuguesa, de acordo com os testemunhos, a regra de não haver consumo de bebidas alcoólicas durante operações militares era genericamente cumprida. No entanto, alguns ex-combatentes confirmam a ingestão de bebidas alcoólicas durante saídas operacionais, não obstante tal ser consensualmente considerado algo perigoso e uma inconsciência.

17 A regra geral era que os quartéis portugueses em África tivessem espaços diferentes para praças e graduados comerem e beberem, acontecendo por vezes que sargentos e oficiais partilhavam o mesmo refeitório, mas tinham espaços autónomos para adquirir e consumir bebidas alcoólicas (messe de oficiais e bar de sargentos).

18 A pergunta era colocada antes de no questionário se falar de álcool e drogas, pretendendo-se, assim, evitar o enviesamento das respostas.

19 António Lobo Antunes, que entre 1971 e 1972, esteve presente na Guerra Colonial Portuguesa como médico militar em Angola, revela nas suas cartas enviadas de África para a mulher, entretanto reunidas em livro, o quão baratas eram vendidas as bebidas alcoólicas nos quartéis. De facto, embora não bebesse, o médico aproveitava para as comprar e enviar para Lisboa: “Como todos os meses compro uma garrafa, já vou em 4 de uísque. Vou agora mudar-me para os conhaques, gins, etc., de modo a que, quando voltar, tenhamos uma boa garrafeira. São tudo marcas ótimas, e saem a cerca de 100.00 cada. Parece-me que vale a pena” (2005: 175).

20 Por exemplo, os entrevistados tendem a associar o alcoolismo sobretudo a casos em que o consumo excessivo de álcool era um hábito anterior ao serviço militar. Por outro lado, alcoólico não era quem bebia muito, mas sobretudo quem bebia constantemente, quem “não sabia beber” ou não aguentava os seus efeitos e se embriagava recorrentemente (“maus vinhos”).

21 Em contrapartida, alguns ex-combatentes que estiveram na Guiné durante a Guerra Colonial Portuguesa referem o consumo, quase sempre experimental e esporádico, de noz de cola, fruto de plantas ricas em cafeína e com efeito estimulante, que era usado tradicionalmente em algumas regiões da parte ocidental do continente africano (Lovejoy 2007 [1995]).

22 Entre estas personagens-chave destacavam-se os soldados de incorporação local que serviam no exército português, e cujo número foi crescendo com o decorrer do conflito (F. Rodrigues 2012).

23 Tudo indica que, pelo contrário, em pontos nevrálgicos e de confluência dos militares – como a cidade de Mueda, em Moçambique –, a canábis tinha uma presença mais forte.

24 Assistiu-se à mesma resistência em abordar certos temas e ao traçar da “fronteira que separa o que deve ser lembrado do que deve ser esquecido” de que fala Maria José Lobo Antunes (2015: 374).

25 Na primeira página do Diário de Lisboa, de 11 de fevereiro de 1961, escrevia-se acerca do “grupo de alucinados” responsável pelos ataques: “alguns estavam verdadeiramente narcotizados […], outros teriam bebido fortemente e davam mostras da bravura inconsciente mas inefetiva dos etilizados, mas outros ainda teriam tomado coca-cola na qual dissolveram comprimidos de aspirina – que constitui uma espécie de droga barata e que produz uma embriaguez heroica”.

26 Cachipembe (ou caxipembe) é uma bebida alcoólica tradicional angolana, concretamente uma aguardente destilada a partir da fermentação de farelo de milho.

27 O termo “cafre” é de origem árabe, equivalente a “bárbaro”, e era usado na África portuguesa para designar povos depreciativamente considerados “incultos” e “infiéis”.

28 Em Uma Breve História da Cannabis em Portugal, Luís Torres Fontes e João Carvalho falam da improbabilidade que foi os europeus terem lidado “com a cannabis durante séculos sem se darem conta dos seus poderes psicoativos” (2011 [2002]: 176), o que só começou a mudar com a publicação em 1563 dos escritos do português Garcia de Orta sobre as plantas medicinais da Índia (Booth 2005).Top of page

References
Bibliographical reference

Vasco Gil Calado, « As drogas em combate: usos e significados das substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa », Etnográfica, vol. 20 (3) | 2016, 471-494.
Electronic reference

Vasco Gil Calado, « As drogas em combate: usos e significados das substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa », Etnográfica [Online], vol. 20 (3) | 2016, Online since 27 November 2016, connection on 05 June 2019. URL : http://journals.openedition.org/etnografica/4628 ; DOI : 10.4000/etnografica.4628Top of page

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ISCTE-IUL; SICAD, Portugal

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