A LOGÍSTICA DE PORTUGAL NA GUERRA SUBVERSIVA DE ÁFRICA (1961 A 1974)
Capitão
Pedro da Silva Monteiro
1. Introdução
Entre 1961 e 1974, Portugal esteve envolvido num conflito militar de cariz subversivo no continente africano contra os movimentos independentistas, no qual se procurou assegurar a sua presença através da força militar. A manutenção do império colonial era condição essencial para a sobrevivência do regime[1] e, no entender de muitos, de Portugal enquanto nação independente[2]. Neste contexto, o regime utilizou diversas estratégias no esforço de manter intactas as suas possessões em África, onde se destaca a presença permanente da manobra logística, “o fator vital da guerra”[3]. Na realidade, Portugal mantinha anualmente uma média de mais de 100.000 homens em armas em três teatros de operações (TO)[4] distintos, e separados entre si e da sua principal base de sustentação logística por milhares de quilómetros[5]. A guerra envolveu operações de combate[6] e operações logísticas[7] realizadas em larga escala, e de apoio às populações em Angola, a partir de março de 1961, na Guiné, após 1963, e em Moçambique, após 1964. Devido a todas as insuficiências em recursos naturais, demográficos e financeiros, a sustentação das operações militares revelava-se difícil, pelo que a manobra logística desempenhou um papel fundamental na consecução desse objetivo. Neste sentido, a análise do esforço logístico realizado por Portugal durante a guerra, torna-se fundamental para melhor se compreender o esforço operacional, os seus resultados práticos e a realidade da guerra. Pretende-se deste modo, contribuir para desvendar o que o historiador António Telo afirma ser um “verdadeiro enigma histórico”[8], quando se refere à capacidade de Portugal ter conseguido permanecer em África até 1974, e que John P. Cann classifica como “um notável feito de armas”[9].
A questão central deste trabalho é saber: em que medida a manobra logística de Portugal influenciou as operações militares nos três TO e contribuiu para a sustentabilidade da Guerra Subversiva de África, de 1961 a 1974?
Da questão central derivam outras questões que vão dar corpo ao trabalho: qual a estrutura logística de Portugal antes e durante da guerra? Que dificuldades sentiram os serviços de apoio logístico de Portugal e quais os maiores problemas verificados? O que esperava o governo português do sistema logístico? Quais as necessidades sentidas pelas forças em operações, e que abastecimentos foram fornecidos? Que apoios logísticos recebeu Portugal do exterior? Como é que os serviços de apoio logístico se adaptaram às exigências operacionais e que implementações foram feitas?
Este trabalho inicia-se em 4 de abril de 1949, data da adesão de Portugal à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), destinada a legitimar a aceitação internacional do regime e a garantir o “indispensável apoio exterior” ao rearmamento e modernização das Forças Armadas (FA)[10], necessário para a manutenção das “províncias ultramarinas”[11], e termina com a queda do regime em 1974.
O estudo irá iniciar-se com um enquadramento geopolítico e estratégico de Portugal antes da Guerra em África, seguindo-se a evolução logística portuguesa desde a adesão à OTAN até ao início da guerra, tendo como pano de fundo a sustentação das operações militares. Posteriormente, caracterizam-se as dificuldades logísticas impostas pela guerra, a projeção para África, as necessidades exigidas em campanha e os apoios recebidos, seguindo-se a análise à adaptação da manobra logística de Portugal aos TO. Finaliza-se o estudo com umas breves conclusões, contemplando a forma como a manobra logística possibilitou a sustentabilidade da Guerra Subversiva em África.
2. Portugal: da adesão à OTAN à guerra em África
2.1. Enquadramento Geopolítico e Estratégico
No final da Segunda Guerra Mundial, Portugal saiu política e economicamente reforçado[12], com avultadas quantias em reservas de ouro e em divisas[13]. A vida política em Portugal era regulada pela Constituição Política da Republica Portuguesa de 1933, que sobrelevava a independência nacional como algo transcendente[14], pelo que o império colonial foi incorporado na Constituição através do Ato Colonial[15], que segundo o historiador Fernando Rosas, representou uma iniciativa legislativa para centralizar política, administrativa e financeiramente a gestão das colónias “num todo indivisível com a cabeça na Metrópole”, onde residia “a essência orgânica da Nação Portuguesa”[16]. Como consequência, aumentou a ligação entre a Metrópole e os territórios ultramarinos através do reforço das trocas comerciais no espaço económico português, com maior proteção aos produtos portugueses e com a contenção da industrialização das colónias[17]. Entre 1945 e 1953, é lançado um programa de investimentos vasto mas todo ele controlado pelo Estado Português e de aplicação gradual[18]. Em Portugal Continental, fizeram-se investimentos ao nível da política de obras públicas, preparando as infraestruturas necessárias ao desenvolvimento económico, nomeadamente no campo da indústria, e ao nível das comunicações e transportes[19]. Em Angola e Moçambique, investiu-se nos transportes, na agricultura, em barragens hidroelétricas e na exploração mineira de cobre e carvão. A refinação de açúcar aumentou 40% em Angola, a produção de álcool duplicou e os têxteis de algodão quadruplicaram no período compreendido entre 1949 e 1959[20]. A população branca aumentou, fundamentalmente por razões políticas[21], de modo a despertar o interesse internacional pelos territórios portugueses, numa época de crescente isolamento de Portugal face à sua política ultramarina.
No entanto, apesar das diferenças ideológicas entre Portugal e as democracias ocidentais, o Estado Novo não se colocou à margem do novo sistema económico ocidental do pós-guerra, acabando por assinar a convenção que criava a Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE) e solicitar um empréstimo da ordem dos 625 milhões de dólares, no final de 1948[22]. No âmbito do Plano Marshall, Portugal conseguiu que as colónias fossem abrangidas nos programas de ajuda norte-americana e conseguiu importantes apoios financeiros, “cerca de 90 milhões de dólares, um montante que serviu de catalisador para a sua economia”[23]. A integração de Portugal na Associação Europeia do Comércio Livre, European Free Trade Association (AECL/EFTA), em 1960, simbolizou a abertura aos mercados externos[24]. Portugal aderiu ainda ao Banco Mundial (BM) e ao Fundo Monetário Internacional (FMI)[25]. O impacto do capital estrangeiro na economia nacional permitiu o desenvolvimento de indústrias nos territórios ultramarinos, sustentado sobretudo por investimentos estrangeiros privados, nomeadamente da Bélgica, nas minas de diamantes, do Reino Unido, aplicado nos caminhos-de-ferro e dos EUA na exploração petrolífera. Este investimento somava, em 1961, cerca de 15% do capital fixo bruto do Ultramar, o que tornava as possessões ultramarinas economicamente viáveis, e aumentou para quase 25%, em 1966[26].
No plano internacional, o fim da Segunda Guerra Mundial conduziu à divisão do mundo em dois blocos antagónicos com dois polos de poder: os EUA e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O sistema internacional configurou-se como bipolar, passando o Reino Unido para segundo plano, resultando num permanente estado de tensão entre estes dois blocos[27] que ficou conhecido por Guerra Fria. Neste contexto, a URSS[28], “paralisada numa ação direta, adotou uma estratégia indireta” através do apoio a todas as insurreições, visando o “enfraquecimento do Ocidente”[29], liderado pelos EUA[30]. Esta agressão indireta e subversiva foi utilizada nos TO de Angola, Guiné e Moçambique, através dos apoios financeiros, de formação e em armamento à insurreição. Apesar do ambiente de tensão no sistema internacional, a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) pretendia inaugurar uma nova época de paz e convivência entre os povos, nomeadamente o fim dos sistemas totalitários e a implantação de regimes democráticos. Com a aprovação da declaração universal dos direitos do homem e consequente regra de “um homem um voto”, independentemente das condições, emergiu inevitavelmente o anticolonialismo, que resultou no reconhecimento à autodeterminação na vida social e, por extensão, o direito à autodeterminação dos povos[31]. Assistiu-se assim ao início da crise do sistema colonial português, com o “amadurecimento de um movimento que vinha de 1945”, materializado com a independência da Índia e Paquistão, em 1947, acelerando a retirada das soberanias coloniais de África. No entanto, esta retirada derivou de uma revisão da logística de cada império e não do reconhecimento das “maturidades políticas”[32].
Em 1949, ocorre a entrada ponderada de Portugal na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), com o objetivo de controlar a hegemonia da URSS através de uma aproximação aos EUA[33], numa altura em que o Reino Unido já não garantia as “funções tradicionais da aliança”[34]. Para Salazar, a manutenção da integridade dos territórios ultramarinos conviria aos ocidentais[35], pois tinha a “reservada convicção” que a Terceira Guerra Mundial era previsível[36]. Deste modo, durante a fase das negociações para a adesão à OTAN, procurou obter a inclusão das colónias no âmbito da defesa coletiva[37], argumentando que a importância estratégica de Portugal, permitiria controlar as mais importantes rotas marítimas no Atlântico Sul e a ligação entre o Índico e o Atlântico e, acima de tudo, em caso de uma invasão soviética, dava a “profundidade estratégica” à Europa, concedida pelos territórios portugueses em África[38]. Com esta adesão, Portugal conseguiu dois objetivos fundamentais: no campo político, obter a legitimação e a aceitação internacional do regime, e no campo militar, garantir o apoio exterior à execução do processo de rearmamento e modernização das FA iniciado antes do conflito ultramarino[39].
A Constituição de 1933 acabou por se concretizar na reforma de 1951[40], na qual foram substituídos os termos “império” e “colónia” e a designação “províncias” começa a ser aplicada aos territórios ultramarinos para defesa da tese integracionista[41]. Neste contexto, Portugal assinou ainda dois acordos de auxílio militar: o Acordo de Auxílio Mútuo para a Defesa, em 5 de janeiro de 1951, que regulava o fornecimento de equipamento militar norte-americano e sedimentava a defesa de Portugal no Atlântico Norte, e o Acordo de Defesa entre Portugal e os EUA, em 6 de setembro de 1951, que concedia aos EUA a base dos Açores em caso de guerra durante a vigência da OTAN[42].
Em 1953, a economia portuguesa sofreu reformas profundas e estruturais com a implementação do I Plano de Fomento (PF), aprovado pela Lei n.º 2058, de 29 de dezembro de 1952, destinado ao período de 1953 a 1958 que, embora fosse direcionado aos investimentos públicos, permitiu iniciar-se em Portugal uma séria industrialização. Seguiu-se o II PF, aprovado pela Lei n.º 2094, de 25 de novembro de 1958, destinado ao período de 1959 a 1964, que estaria em fase de implementação quando se iniciou a guerra em Angola[43].
O falhanço da operação anglo-francesa no Suez, em 1956, sob pressão dos EUA e URSS, revelou ao governo português a tendência, a curto prazo, para o desenvolvimento dos nacionalismos africanos[44]. Este afastamento norte-americano, levou a uma reorientação do esforço do governo português para a defesa do império, em detrimento da participação na OTAN. Os Decretos-Lei (DL) 41 559 e 41 577, aprovados no início de 1958, viriam a alterar a organização militar do império, com o aumento de efetivos, dispersão das forças ultramarinas[45], envio de militares dos quadros para as “províncias” para cumprir serviço de três anos e envio de oficiais portugueses para frequentar cursos de contraguerrilha no estrangeiro, nomeadamente na Bélgica, Espanha e França, embora em número reduzido, devido à falta de apoio dos EUA[46]. Na realidade, até 1958, a posição dominante em Portugal era a da inevitabilidade da Terceira Guerra Mundial, daí a organização, preparação e equipamento das forças terrestres ultramarinas seguirem os padrões convencionais destinados a atuar no TO europeu. Só após janeiro de 1959 é que a prioridade do “esforço militar passou da Europa para o Ultramar”[47], tornando-se oficial em agosto de 1959, com a aprovação de um memorando, elaborado pelo Conselho Superior de Defesa Nacional, onde se remetem para segundo plano os compromissos com a OTAN e os acordos com Espanha, as “duas principais preocupações da defesa nos últimos dez anos”, passando o “esforço de defesa do Ultramar” a assumir a prioridade[48]. Esta alteração de direção de esforço militar, além de problemas de mentalização, causou dificuldades de ordem financeira, devido à necessidade de uma remodelação profunda nas forças terrestres que possibilitasse o cumprimento das tarefas no Ultramar, e ao nível do equipamento, cujo material recentemente recebido ao abrigo do Mutual Defence Assistance Program (MDAP) não podia sair da Metrópole[49].
Deste modo, em 1959, “Portugal não possuía uma capacidade militar autónoma, com adequados níveis de prontidão e de sustentação das forças”, que garantisse a integridade do território nacional[50]. Para remediar a situação, com vista à possibilidade iminente de uma guerra subversiva em África, intensificou-se, no verão de 1959, o envio de oficiais ao estrangeiro no sentido de recolher conhecimentos de experiências nesta tipologia de operações, especialmente na Argélia. O resultado dos conhecimentos adquiridos materializou-se na criação do Centro de Instrução de Operações Especiais, em Lamego, em 1960, e na publicação por Portaria, de 9 de fevereiro de 1963, de nova doutrina e regulamentação: “O Exército na Guerra Subversiva”, em cinco volumes[51]. A nova doutrina refletia o conhecimento prévio dos aspetos que dominavam militar e socialmente a guerra, subordinada ao objetivo político de manutenção do império[52]. A consciência de que “a luta seria prolongada”[53], orientou as operações de contrainsurreição para a manutenção do “conflito a uma escala reduzida, lento e com poucas despesas”[54]. Desta forma, pretendiam-se alcançar dois objetivos fundamentais: permitir a sustentação da guerra por um longo período, e ganhar a confiança da população, através da sua proteção[55].