Um Dia de Portugal diferente
1. Vou ser politicamente incorrecto: não costumo perder tempo com as comemorações oficiais do Dia de Portugal. As cerimónias são aborrecidas, apenas privilegiam o institucional e não me lembro de lhes ver qualquer dimensão popular. Cá fora, nas ruas, as pessoas divorciaram-se da liturgia. O negócio das bandeiras faz-se à conta dos jogos da selecção de futebol. Os discursos costumam ser enfadonhos, inexpugnáveis, dirigidos a uma pequena elite. Assisti uma vez ao vivo e sei do que falo. Assim, habituei-me a ver curtíssimos resumos desse tédio e nunca me dei por mal informado ou mau português.
Era isto mesmo que ia voltar a fazer este ano, mas por mero acaso liguei o aparelho de televisão na quinta-feira de manhã. Começava a falar António Barreto. Decidi, pelo respeito intelectual devido ao novo presidente das Comemorações, ouvir as primeiras palavras. Surpreso, fiquei até ao fim, relembrando, inclusive, a minha já distante infância com duas etapas em África (Angola e Moçambique), filho de uma família de militar. Testemunhei em directo um notável acto de cidadania e de justiça: o tributo aos ex-combatentes, que pela primeira vez desfilaram na cerimónia militar oficial.
2. O discurso de António Barreto teve, e tem, vários méritos. É justo, é corajoso, é oportuno. E é o discurso de um verdadeiro intelectual, aquele que sabe olhar para a comunidade estudando fenómenos e identificando necessidades.
Barreto verbalizou um facto: durante 36 anos, os antigos combatentes de Portugal têm sido vítimas de discriminações. Sobretudo depois do 25 de Abril, corporizaram a culpa com que a maioria da sociedade portuguesa, de repente, decidiu olhar para a Guerra Colonial. E teria sido pior se o golpe que depôs o regime do Estado Novo e devolveu a liberdade de expressão e política ao País não tivesse nascido a propósito de reivindicações militares.
Já era tempo, pois, de alguém ter o desassombro intelectual de dizer, em nome do Estado [e o presidente das Comemorações representa-o], aquilo que António Barreto disse, a todos e a cada um de nós - porque o esquecimento de que fala o discurso é a soma de todos os esquecimentos e vergonhas individuais, remete-nos até para o oportunismo de uma sociedade que, reciclada à pressa depois do dia 25 de Abril de 1974, plantou democratas da mais pura estirpe onde antes havia apenas colaboracionistas tementes.
3. Os combatentes, todos os combatentes, foram, e serão, no feliz dizer de Barreto, "soldados de Portugal" e não podem ser tratados como "colonialistas", "fascistas" ou "revolucionários". São homens que um dia partiram para uma guerra, ou continuam a partir para missões internacionais, simplesmente porque o seu País assim o determina. E eles foram, e eles vão, e eles irão, arriscando a vida, sacrificando famílias, porque o País, representado por homens como eles, e independentemente dos regimes do momento, lhes pede essa generosidade.
Os nossos soldados não têm de ter vergonha por serem leais à Pátria (mesmo quando ela tenha sido representada por homens menores e tenha perseguido propósitos injustos) mas o Estado faz bem em assumir a vergonha de ter tido vergonha.
Um país é pobre quando apenas possui decisores, gestores, gente muito rica, e até políticos determinados ou obstinados. Mas pode ser rico, mesmo em tempo de crise, quando no meio de tanta miséria intelectual sobressaem homens que, como António Barreto, sabem pensar e derramar o bálsamo da palavra sobre feridas sociais que urgem ser cicatrizadas. E é para isto que também serve o Dia de Portugal.
JOÃO MARCELINO
publicado a 2010-06-12 às 01:30