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quinta-feira, 24 de maio de 2018

Ao lado dos portugueses, combatiam em Angola... de arco e flecha

Eram bosquímanos e odiavam os independentistas da UNITA, FNLA e MPLA. Exímios pisteiros, moviam-se na noite, matavam com setas envenenadas e foram o terror do inimigo. Eram os Flechas


 Se perguntar a um português o que tem a dizer sobre os bosquímanos é provável que obtenha uma resposta vaga sobre África, mas se acrescentar que os protagonistas do famoso filme Os Deuses Devem Estar Loucos (1980) eram bosquímanos produz-se então uma ideia mais clara deste povo 
simpático, franzino e primitivo.

E, ainda, se o seu interlocutor for um ex-combatente em Angola, é possível que a palavra "bosquímano" lhe traga outras razões para sorrir. E que a seguir lhe fale dos Flechas. Prepare-se para o ouvir, porque a história é boa.
Começou tudo em 1967, ia a guerra pela Independência em Angola com meia dúzia de anos. Os Flechas nasceram no Cuando-Cubango, província no Sudeste do país onde o MPLA e a UNITA já combatiam a potência ocupante.
Era necessário à PIDE um melhor trabalho no terreno e a ideia de criar uma tropa especial de bosquímanos surgiu de uma conversa entre Óscar Cardoso (ver caixa) e Manuel Pontes, ex-administrador português na região, figura respeitada entre os locais
.
Amarrados como escravos

Os bosquímanos tinham as aptidões para a tarefa e tinham sobretudo um motivo: odiavam de morte os bantus, a etnia dominante na região subsahariana.


Fernando Cavaleiro Ângelo, oficial da Marinha de 47 anos e autor do livro agora lançado, Os Flechas – A Tropa Secreta da PIDE/DGS na Guerra de Angola (editora Casa das Letras), diz à SÁBADO que os bantus tratavam os bosquímanos como inferiores, "há registos, por exemplo, de os terem amarrados, como escravos". A aliança entre portugueses e bosquímanos era o clássico chavão inimigo do meu inimigo, meu amigo é.
Começaram por ser apenas oito, depois foram 60 e chegaram a passar os 1.000. As missões eram simples, como detectar acampamentos inimigos e recolher informações (papéis, mapas e planos).

Matar não era uma pioridade, mas os Flechas matavam. Baixos e esguios, no confronto físico não teriam qualquer hipótese – como matavam, então?
Daqui nasceu a reputação dos Flechas. Como o mato era o seu terreno há milhares de anos, "alimentavam­-se do que a terra dava. A primeira vez que lhes deram rações de combate, comeram os plásticos... Foi uma lição: tinham de os deixar no estado primitivo", diz o autor do livro.
Rápidos e silenciosos na noite, não gostavam de ter brancos ao seu lado. "Em missões conjuntas com portugueses, tiveram de proibir o uso de after-shaves e espumas da barba. Eram logo detectados pelo cheiro."



Ainda que numa fase posterior os portugueses os tivessem treinado com pequenas armas de fogo, as flechas envenenadas com que matavam animais no mato eram o seu segredo na Guerra Colonial. "O veneno atacava o sistema nervoso central, os inimigos ficavam paralisados, de olhos abertos, a ver a morte a chegar."



Após o fim da guerra, os Flechas foram perseguidos (alguns mortos) e refugiaram-se em territórios da actual Namíbia.


O cérebro


Óscar Cardoso, 81 anos, é o pai da criação dos Flechas. A sua vida dava um filme. Estudou no Colégio Moderno, entrou na Legião Portuguesa e fez tropa na Índia. Regressou a Portugal, entrou na GNR e depois, em 1965, na PIDE. Foi destacado para Angola em 1966. Foi preso no 25 de Abril, mas fugiu numa saída precária e foi para a Rodésia (hoje Zimbabwe).

Texto originalmente publicado na edição da SÁBADO n.º 671 de 9 de Março de 2017.


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