Opinião
Portugal e as Nações Unidas
Por Manuel Loff
No âmago da nossa política externa predomina quem sempre menosprezou (ou simplesmente detesta) a ONU: primeiro porque ela apoiou empenhadamente o fim da hegemonia colonial da Europa e do Ocidente sobre o planeta; depois porque ela, e em particular as suas agências, assumiu uma leitura crescentemente social do mundo, de que, em certa medida, o Guterres alto-comissário para os Refugiados foi um porta-voz que nunca agradou a esta gente; finalmente, porque a ONU está fundada na ilegitimidade essencial dos comportamentos expansionistas e imperiais dos gendarmes do mundo, enquanto quem se arrogou o exclusivo de pensar e gerir a posição de Portugal no mundo entende que o nosso futuro passa por se colar aos grandes "do nosso lado", sejam eles os norte-americanos desde 1945, possam eles ser hoje os alemães na UE.
A grande maioria da história da política externa portuguesa desde que entrámos na NATO (1949) e desde que pedimos para entrar na CEE (1977) foi gerida por governos que se empenhavam em colocar-se em bicos de pés para ver o que caía do prato dos mais poderosos do Ocidente. Neste sentido, se há Estado europeu tradicionalmente menos multilateralista, ele é Portugal. O discurso formal até pode ser outro, e é-o; a prática é que é a contrária. É muito revelador que nesse grupo restrito de diplomatas, de militares e de académicos (que colaboram com os segundos e pretendem um dia fazer parte dos primeiros) que pontificam sobre as nossas relações internacionais vigore, com alguma saudável excepção, uma ortodoxia realista que bloqueia um grau, mínimo que seja, de criatividade na procura de soluções para os nossos problemas internacionais (o da dívida, em primeiro lugar) e de aliados externos para as conseguir atingir.
Durante a ditadura, o Governo português afrontou a ONU e tudo quanto de sistema internacional de gestão da paz e prevenção da guerra ela significava. Teimosa e abertamente partidário da preservação da hegemonia ocidental e da "supremacia branca" sobre o sistema internacional, Salazar, uma vez conseguido o ingresso na ONU (1955), nunca assinou a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e não só se recusou a aplicar a Carta das Nações Unidas, negando possuir colónias e, portanto, a prestar informação sobre elas, como sabotou o bloqueio internacional ao regime de minoria branca imposto na Rodésia em 1965. Mais grave ainda, sabotou uma das primeiras, e maiores, operações de paz da ONU, no Congo (1960-64), apoiando com armas e logística a secessão armada do Katanga alimentada por antigos colonos belgas. O próprio secretário-geral Dag Hammarskjöld foi assassinado quando o seu avião foi abatido na Zâmbia (ainda sob domínio colonial britânico), segundo os últimos dados da investigação (2011 e 2014) por mercenários belgas com o conhecimento de norte-americanos e britânicos. Marcelo, o Caetano, abandonou a UNESCO em 1971. Que a África do Sul tenha permanecido quase o único aliado de Portugal contra todas as sanções aprovadas pela ONU nos anos da Guerra Colonial diz bem do canto do sistema internacional para onde o Estado português se atirara. E ajuda a perceber porque é que os nossos governos se opuseram às sanções internacionais contra o regime do apartheid sul-africano, quer nos tempos de Salazar, quer nos de Cavaco Silva (e que vergonha este, com semelhante passado, se tenha atrevido a fazer o elogio póstumo de Mandela!).
O desprezo vem de há muitos anos e ainda não cessou.
Historiador, escreve quinzenalmente ao sábado
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