domingo, 2 de junho de 2019

Guerra Colonial - drogas I

Guerra Colonial Portuguesa

  • 4 Quando aqui se fala de “ex-combatentes” ou, mais genericamente, de “militares”, está-se a incluir s (...)
  • 5 Não foi o mesmo ter estado numa região pacificada ou numa região militarmente ativa, haver tido fun (...)
8A forma como os ex-combatentes falam e escrevem acerca da sua experiência de guerra no “Ultramar” é extremamente variável, indo de uma postura mais distanciada a uma posição mais vivida, de um tom pícaro e quase anedótico a um mais dramático e sofrido, de uma posição de explicação e enquadramento histórico e social a um registo puramente individualista e autocentrado.4 A própria experiência de guerra variou muito consoante o ano e o local onde o serviço militar foi prestado, sendo radicalmente diferente de região para região e de função para função.5 Por tudo isto, e tal já foi dito mil vezes, a Guerra Colonial Portuguesa não foi uma mas muitas guerras, porventura tantas quantas os militares envolvidos.
9Há, no entanto, traços comuns ao conjunto dos testemunhos. Por exemplo, embora a guerra tenha terminado há mais de 40 ou 50 anos, a grande maioria dos entrevistados fala dela e de episódios lá vividos como se tudo se tivesse passado muito recentemente. Outros falam como se para eles a guerra nunca tivesse acabado (Loja 2013 [2002]; Janeiro 2012; Bastos 2008). Em muitos textos, perpassa uma vincada necessidade de acertar contas com o passado, de impedir que o vivido caia no esquecimento, de deixar escritos para memória futura e de homenagear os companheiros de luta, nomeadamente aqueles que morreram em combate. Também a ideia de que a experiência de guerra transforma e faz amadurecer os jovens à força é recorrente (Niza 2012; Ganhão 2007; Monteiro 2001).
  • 6 “Drogas” e “substâncias psicoativas” são aqui usadas como sinónimos e incluem todas as substâncias (...)
10Feito um esforço para identificar os principais eixos de análise, emergem três ideias-chave, relevantes na medida em que ajudam a contextualizar, enquadrar e explicar o uso de substâncias psicoativas naquele contexto específico.6 Nos testemunhos dos ex-combatentes, tanto explícita como implicitamente, a Guerra Colonial Portuguesa tende a ser apresentada como: (a) um tempo de experimentação e de contacto com novas realidades; (b) uma experiência feita de grande tensão e estados de ansiedade constante; (c) um contexto de pouca preparação militar, alguma indisciplina e formas de contestação.
  • 7 O discurso hegemónico acerca da Guerra Colonial Portuguesa tende a secundarizar ou omitir a experiê (...)
  • 8 Os militares portugueses viram-se imersos num mundo “exótico”, tanto do ponto de vista do mundo nat (...)
  • 9 Alguns militares, por exemplo, relatam a experiência de comer camarão cozido pela primeira vez (Oei (...)
11Para a grande maioria dos militares que nela participaram, oriundos da “Metrópole”, a guerra em África foi, em muitos sentidos, um mundo admiravelmente novo. Excluindo o caso dos militares que foram recrutados localmente – “colonos” e “nativos”, para usar as expressões da altura 7 –, tudo se passou num continente estranho, profundamente diferente do que a generalidade dos soldados portugueses conhecia: os cheiros, os sabores e os sons, a fauna e a flora, a escala e a dimensão, o clima, a paisagem e as cores, etc., tudo era novidade e muito foi vivido, sentido ou experimentado ali pela primeira vez (V. Santos 2013; Ferreira 2011; Oeiras 2009; A. L. Antunes 2005). Para mais, muitos dos militares portugueses que participaram na Guerra Colonial Portuguesa – de baixa patente, sobretudo – são apresentados como muito novos, pouco viajados, com baixas habilitações literárias e oriundos de um Portugal rural (M. J. L. Antunes 2015; Oeiras 2009), constituindo o serviço militar a sua primeira vivência fora da casa dos pais. Nesse sentido, o período de guerra, enquanto incursão num mundo “exótico”, constituiu um óbvio corte com o quotidiano, uma pausa no percurso de vida (M. J. L. Antunes 2015; Niza 2012; Vardasca 2012).8 Como se verá, para alguns, entre as novas experiências tidas na guerra constam a ingestão de determinadas comidas e bebidas,9 mas também o uso de substâncias psicoativas lícitas (como bebidas alcoólicas específicas, destiladas ou de fabrico artesanal local, por exemplo, resultando por vezes na primeira experiência de um estado de embriaguez) e ilícitas (como a canábis) (Ferreira 2011).
12Invariavelmente, fruto da própria natureza do conflito, a Guerra Colonial Portuguesa é descrita como uma experiência de desgaste, dura e difícil de suportar, tanto do ponto de vista físico e das condições materiais como do ponto de vista mental e psicológico. Enfrentar um movimento de guerrilha implica combater um inimigo que na maior parte das vezes não se vê e se esconde, que ataca quando não se espera e contra o qual há que estar sempre à defesa. Como refere Luís Oeiras, que participou neste conflito como alferes em Moçambique, “um combate de guerrilha é como um terramoto. Pode estoirar em qualquer altura, mas não se pode viver à espera debaixo de uma mesa” (2009: 39).
  • 10 Excluem-se as chamadas “tropas especiais” – comandos, fuzileiros, paraquedistas, entre outras – de (...)
13Aliás, para a generalidade da tropa convencional,10 tratou-se de uma guerra defensiva, procurando evitar emboscadas e ataques de minas, com poucas incursões ofensivas (e que muitas vezes não chegavam a resultar em confrontos). Por outro lado, os testemunhos estão cheios de referências a tempos mortos, de ócio e de inatividade, passíveis, no entanto, de serem interrompidos a qualquer instante por um ataque inimigo. Segundo Manuel Bastos, que esteve como alferes em Moçambique, “a vida de um soldado é feita de longos períodos de tédio, que alternam com curtos períodos de terror […] porém nestes períodos de tédio é que verdadeiramente nos visita o medo, quando a adrenalina está baixa e a fantasia mais volátil que o fumo do cigarro” (2008: 169).
  • 11 A experiência de guerra inclui casos de militares que não chegaram a disparar um tiro e / ou não se (...)
  • 12 Manuel Bastos inicia assim o seu livro Cacimbados: A Vida por Um Fio: “Chamavam esgazeados aos ex-c (...)
14Recorrentemente é descrito um ambiente sufocante e concentracionário (M. J. L. Antunes 2015; A. L. Antunes 2005), marcado pelo isolamento, pelo stress e muita ansiedade, mesmo por quem viveu a guerra em regiões de menor atividade militar do inimigo (Sousa 2007; Lopes 1998).11 Era o inimigo quem conhecia e dominava o terreno, daí tirando óbvio benefício: de alguma forma, as tropas portuguesas eram em África um corpo estranho. Por tudo isto, os testemunhos incluem constantes referências a problemas mentais e episódios de descompensação, descritos pelos próprios ou relatados por terceiros, tipificados na figura do “cacimbado” (Janeiro 2012; Bastos 2008).12 De uma forma genérica, a saúde mental dos ex-combatentes das forças armadas presentes na Guerra Colonial Portuguesa degradava-se visivelmente à medida que o tempo de comissão ia passando (Loja 2013 [2002]; Aguiar 2007), atingindo o ponto mínimo de sanidade (se é que tal pode ser medido) na altura da rendição, para espanto e choque das tropas acabadas de chegar à frente de combate (M. J. L. Antunes 2015; Janeiro 2012; Mata 2012; Pereira 2011).
  • 13 O Cancioneiro do Niassa consiste num conjunto de adaptações de fados e canções em voga (de Bob Dyla (...)
15Por último, perpassa nos testemunhos uma sensação de que os militares envolvidos na Guerra Colonial Portuguesa se sentiam “carne para canhão”, manifestando amiúde uma certa antipatia e desdém em relação aos comandantes e, sobretudo, às chefias de topo e aos “senhores da guerra”, tidos como os responsáveis pela dura situação que se sentiam obrigados a enfrentar (Loja 2013 [2002]; Aguiar 2007; A. L. Antunes 2005). Em alguns casos, tal pareceu resultar num afrouxar da disciplina militar e em atos de desobediência e outros que colidiam com as regras de conduta militar. Por outro lado, para os ex-combatentes, o conceito de “camaradagem” (T. M. Silva 2007) foi, em certo sentido, mais relevante do que os de “pátria” ou “dever patriótico” (Sá 2009) – o dever sentido era sobretudo para com os camaradas de armas. A nível pessoal, portanto, o propósito último da guerra travada parece não ter sido lutar pela pátria mas, pura e simplesmente, sobreviver e chegar ao fim da comissão vivo, são e inteiro. Como tal, muitos ex-combatentes declaram ter feito a guerra com pouca convicção – mesmo aqueles que se ofereceram como voluntários –, daí derivando, mais uma vez, uma série de pequenos e grandes atos de indisciplina e fabrico de regras próprias. Para mais, perpassa também nos testemunhos um claro sentimento de impreparação militar e operacional (Lopes 1998), aliado a uma carência no que toca aos meios materiais disponíveis e às fracas condições de vida na maior parte dos quartéis – em particular naqueles localizados em zonas mais remotas –, o que contribuiu para desvincular os militares de causas ideológicas (V. Santos 2013; Mata 2012; Vardasca 2012) e favoreceu formas de contestação (como o Cancioneiro do Niassa, por exemplo).13
  • 14 De forma provocatória, “vício” é aqui entendido num duplo sentido: como algo que é considerado adic (...)
16É tendo este cenário como pano de fundo que os ex-militares entrevistados enquadram e contextualizam um conjunto de práticas e “vícios” 14 que tiveram lugar na Guerra Colonial Portuguesa: jogo, indisciplina, violência, atrocidades, prostituição, homossexualidade e também uso e abuso de substâncias psicoativas (Alexandre 2015; Martins 2003). Uns são descritos como transversais e generalizados, outros como interditos, alguns foram alvo de censura social, outros foram praticados sobretudo longe dos olhares públicos, mas todos são hoje explicados à luz da natureza do conflito militar e dos seus condicionantes.

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