Recordar José Niza (1938-2011) - em Sete Vidas que esteve no nosso habitual almoçoacompanhado de sua esposa, pouco tempo antes de falecer
LETRAS
23.09.2011 às 14h01
Faleceu, sexta-feira aos 75 anos, o músico, em Lisboa, o músico, letrista, médico e ex-deputado socialista José Niza. Entre muitas outras canções foi o autor de E Depois do Adeus, tema interpretado por Paulo de Carvalho. Republicamos aqui a 'autobiografia' que escreveu para o JL
JOSÉ NIZA
Sete vidas são as que vivi até agora. E 70 os anos que espero completar em Setembro próximo. Antes de percorrer convosco os sete caminhos desta saga de andarilho, deixem-me proclamar que estou agradecido à vida. A verdade é que a vida me correu bem, tive sorte, encontrei a mulher certa, tenho três filhos que só sabem dar alegria aos pais, tive até a felicidade de viver o 25 de Abril de 1974. Quase tudo o que me aconteceu não foram coisas que perseguisse, ou que correspondessem a projectos de vida.
À excepção da minha mulher e da opção pela Medicina, tudo o resto veio ter comigo, paulatinamente enriqueceu e comandando a minha vida. Nunca me passou pela cabeça ser deputado, ou director de programas da RTP, ou escrever cerca de 300 canções, ou estar dois anos numa guerra. Por tudo isto agradeço à vida o que me deu. Não tenho livro de reclamações a não ser para lutar pelos direitos dos pobres, dos humildes e para que haja mais justiça e solidariedade em Portugal.
Comecemos então pelo princípio. Em 16 de Setembro de 1938 fui nascer a Lisboa, na Maternidade Alfredo da Costa, mas rapidamente regressei a Portalegre onde o meu pai era engenheiro da Junta Autónoma das Estradas. Primeiro filho, primeiro neto e primeiro sobrinho de tias e tios solteiros, a minha chegada ao mundo fez de mim um pequeno príncipe. Cedo, muito cedo, me apaixonei pela vida no campo. A apanha da azeitona e dos figos. As vindimas, as ceifas e as debulhas em Campo Maior, na eira do meu avô, onde comia gaspacho fresquinho com os ganhões, nos dias tórridos de Agosto.
Aos 6 anos mudámo-nos para Santarém, onde fui matriculado na 1ª classe da escola do Salvador.
Aos 7 fiz o meu primeiro discurso político! D. Adélia, a minha professora, tinha-me escolhido para falar na inauguração da nova escola de S. Bento, onde botariam discurso as figuras gradas da política local. Convinha que um menino animasse a cerimónia. Li uma folhinha escrita pela professora (que a minha mãe guardou).
Saí-me bem, mas não fazia ideia do que tinha dito. Muitos anos depois a minha mãe mostrou-me a tal folhinha. Seria difícil tecer maiores elogios a Salazar! Depois foi o Liceu. No exame do 2º ano dispensei das provas orais. O único, entre mais de 1 200 alunos de todo o distrito.
O meu pai ofereceu me uma linda bicicleta e eu lá ia pedalando à volta do Liceu, enquanto os outros faziam as orais.
Mais ou menos por essa altura, com uns 12 anos, fui a um baile no Clube de Santarém e conheci uma loirinha de olhos azuis, muito bonita e muito tímida. Mal sabíamos então o que aquele encontro iria significar nas nossas vidas. Aos 14 anos comecei a tocar guitarra, aprendendo por discos de 78 rotações de Artur Paredes.
Santarém tinha uma sólida e saudável tradição académica, naturalmente de matriz coimbrã. E foi por isso que escolhi Coimbra para estudar Medicina, uma das melhores opções da minha vida. Para além de Medicina aprendi coisas que moldaram a minha forma de ver as coisas, a democracia, e conheci amigos de uma geração até hoje não repetida.
Em 31 de Dezembro de 1960 o dia do assalto ao quartel de Beja o meu pai morreu inesperadamente.
Tive de suspender os estudos durante três anos para tratar dos negócios da casa. Foram tempos difíceis para os quais não estava preparado.
Em 1966 concluí o curso e três meses depois casei-me com a tal loirinha de olhos azuis, que entretanto se tinha transformado numa das mulheres mais bonitas que conheci.
Ficámos a residir em Coimbra onde nasceu a nossa primeira filha. Apaixonei-me pela Psiquiatria e fiz a tese de licenciatura sobre esquizofrenia.
Em 1969 fui mobilizado para a Guerra Colonial, em Angola, como alferes-médico.
Dois anos nas matas, muitas canções escritas e um alto louvor militar por actos médicos.
No regresso, em 1971, optei por ficar a residir em Lisboa. Trabalhava à tarde como director de produção da editora Arnaldo Trindade (Zeca, Adriano, Paulo de Carvalho, Mário Viegas, etc.) e de manhã no Hospital Miguel Bombarda.
O 25 de Abril foi um dia em que o tempo parou para que a felicidade durasse mais tempo. Soube entretanto que E depois do adeus tinha servido de senha musical para que Salgueiro Maia e os outros capitães de Abril saíssem dos quartéis.
Foram assim minhas as primeiras palavras dessa histórica noite. Filiei-me no PS de Santarém, sem qualquer propósito de ser candidato à Assembleia Constituinte e, muito menos, deputado eleito.
Mas foi o que aconteceu.
Deixei em suspenso o Hospital e a Psiquiatria, convencido de que, uma vez aprovada a Constituição, para lá voltaria. Seria uma coisa de meses... Mas, afinal, foram muitos anos parlamentares, interrompidos por duas passagens pela área do tratamento das toxicodependências, uma delas de dez anos, e outras duas pela RTP, primeiro como director de programas e depois como membro da Administração. Em 2002 aposentei-me da função pública e adquiri um novo e excelente estatuto: nem horários, nem patrões.
O único cargo que actualmente exerço é o de presidente da Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores.
Televisão - Ser director de programas e administrador da RTP foram experiências exaltantes.
O poder e a responsabilidade de decidir que programas Portugal iria ver (ainda não existiam TV's privadas) era um grande peso diário sobre os meus ombros. Em 1977 não tinha qualquer experiência de televisão, mas tinha uma ideia de qual deveria ser o papel de uma televisão de serviço público. Desse período fi caram programas históricos como Gabriela a primeira telenovela apresentada em Portugal A visita da Cornélia e A Feira, programas culturais como Se bem me lembro, de Vitorino Nemésio, Música e Silêncio, de António Vitorino de Almeida, Melomania, de João de Freitas Branco. Ou, para os mais novos, Peço a Palavra, de Mário Viegas, Heidi ou Os Marretas.
Em 1978 fui obrigado a pedir a demissão quando percebi que estava em curso uma manobra para colocar na cúpula da RTP pessoas da confiança política e pessoal de Ramalho Eanes, então Presidente da República. Regressei em 1983.
E desses quase dois anos, ficaram séries como O Tal Canal, do Herman José, Palavras Ditas, do Mário Viegas, a telenovela Chuva na Areia, Viva a Cultura, do António Mega Ferreira, Jogos sem Fronteiras, o Concurso 1, 2, 3, do Carlos Cruz, Mátria, da Natália Correia, etc. Penso, no entanto, que o melhor que deixei na RTP foi a recuperação do seu arquivo, salvo de uma inundação (1978) e transferido, em três dias, para as instalações onde ainda hoje está.
Política - Tudo começou nos tempos de liceu. A insuportável Mocidade Portuguesa, os contínuos informadores da PIDE. Mas também, em contraponto, a quase clandestinidade conspirativa do Cine-Clube. Logo que cheguei a Coimbra tive o meu baptismo de fogo com uma carga da GNR, por causa de um protesto estudandil contra o decreto 40.900, que retirava autonomia à Universidade.
A PIDE inaugurou a minha ficha em 1961, ano em que muitas coisas decisivas aconteceram em Portugal. Em Coimbra a minha luta contra o regime foi sobretudo feita através da música, com José Afonso, Adriano, no Jazz, ou no teatro académico (CITAC) com música para peças que acabavam sempre proibidas.
Em 1974, o 25 de Abril inverteu finalmente a ordem anormal das coisas. A campanha eleitoral para a Constituinte foi a mais exaltante experiência política da minha vida. Cheguei a iniciar, com a Maria Barroso, um comício em Constância, às 3 da manhã! Estive 15 anos no Parlamento, presidi a várias comissões, apresentei algumas leis de minha iniciativa. Cumpri também dois mandatos no Conselho da Europa. Hoje olho para a Assembleia da República com algum desencanto: melhoraram as gravatas, mas rareiam as ideias.
Música - O meu bisavô José Niza foi um excelente compositor erudito e director de orquestra. O meu avô João Niza tocava flauta. E a minha mãe, piano. A música era uma espécie de oxigénio que se respirava lá em casa. Durante o Liceu comecei a aprender guitarra. Depois, em Coimbra, foi o fado, acompanhando Luiz Goes, Machado Soares, Zeca Afonso. Com o Zeca e o Adriano foram as baladas líricas e depois a canção de intervenção.
E ainda o Jazz. Como não sabia escrever música, só comecei a compôr quando apareceram os gravadores de cassetes. A maior parte das minhas cerca de 300 canções filas no final dos anos 60 e na década de 70, para vozes como Adriano, Paulo de Carvalho, Carlos do Carmo, Carlos Mendes, etc. Mais recentemente, para Mísia e Kátia Guerreiro.
Ganhei quatro Festivais RTP da Canção, um recorde que divido com Ary dos Santos. Um deles, com E depois do adeus, a primeira senha musical do 25 de Abril
PS. O José Carlos de Vasconcelos foi claro e taxativo - máximo 9.000 caracteres! Como já os gastei, não há mais papel para escrever sobre a Guerra Colonial, a Psiquiatria e outras vidas que vivi. Dommage.
Curioso que como vivi na zona que era muito frequentada pelo Zeca Afonso, Luís Góis, Carlos Paredes, etc. ainda conheci o Zeca Afonso que frequentava muito o Café Oásis, será dos mais antigos de Coimbra, onde por vezes se ouviam uns fadinhos e baladas. Eu vivia numa zona cujos habitantes se designavam por xibatas, Acrescento que o Zeca bebeu muito da filosofia do Ateneu de Coimbra que sempre foi um antro de revolucionários. É simplesmente uma achega.
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